"Eu não sou uma profissional, eu só escrevo quando eu quero. Eu sou uma amadora e faço questão de continuar sendo amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever. Ou então com o outro, em relação ao outro. Agora eu faço questão de não ser uma profissional para manter minha liberdade". Na - até então - única entrevista em vídeo de Clarice Lispector, ela fala sobre sua profissão e reflete sobre sua trajetória. Seu aspecto abatido, com um cigarro em uma das mãos e de olhos baixos, reflete-se na fala: diz estar cansada de si mesma e, por vezes, ter raiva da sua produção. O conteúdo da TV Cultura, que foi ao ar somente após a morte da escritora (a pedido dela), está disponível no Youtube e reúne 3,5 milhões de visualizações.
Mas agora há outro registro: após anos de pesquisa, a professora e biógrafa Teresa Montero encontrou uma entrevista que Clarice Lispector concedeu para a TV Educativa do Rio de Janeiro (atual TV Brasil) no programa "Os Mágicos". O conteúdo foi gravado em sua casa, com participação especial de seu cachorro Ulisses, e exibido em dezembro de 1976. O fato aconteceu meses antes de sua popular aparição na TV Cultura, em fevereiro de 1977. A transcrição da conversa está na biografia "À procura da própria coisa - Uma biografia de Clarice Lispector", publicada pela editora Rocco e com materiais inéditos frutos de décadas de pesquisa. O vídeo será disponibilizado somente depois, por meio do lançamento do documentário "A Descoberta do Mundo - um documentário sobre Clarice Lispector", dirigido por Tarciana Oliveira.
"A entrevista que encontrei estava guardada há 45 anos. Vi uma referência enquanto pesquisava nos jornais da época de que ela tinha concedido essa entrevista. Eu anotei tudo e guardei aquilo comigo", afirma a pesquisadora. Quando surgiu a oportunidade de lançar o livro, ela retornou ao Arquivo Nacional, órgão público responsável pela preservação de documentos. "O material nem estava identificado. Foi um trabalho de detetive até conseguir digitalizar, que só foi possível porque a produção do filme pagou para ser digitalizado", comenta.
Em sua nova obra, já disponível para compras nas livrarias e em sites, apresenta várias fotografias; uma ficha policial de quando era suspeita de atividades subversivas durante o governo Dutra e a ditadura militar; a viagem que ela fez para Recife um ano antes de sua morte; e os percursos de criação de suas principais obras. Há ainda capítulos dedicados à sua primeira publicação "Eu sou uma pergunta", resultado de sua tese de mestrado em Literatura Brasileira na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC - Rio).
Em mais de 700 páginas, Teresa Montero dividiu a biografia em quatro partes com o objetivo de facilitar a leitura. Na primeira, faz um itinerário sobre a vida de Clarice Lispector. Na segunda, investiga os bastidores de algumas de suas criações. "Encontrei dois capítulos de "A paixão segundo G.H" publicados na revista 'Senhor', onde ela tinha uma coluna, no início dos anos 1960. A descoberta dos dois capítulos muda completamente a visão que existia sobre o processo de criação da obra", exemplifica. No terceiro momento, faz uma espécie de diário de bordo para mostrar como chegou até as informações e demonstrar a importância dos pesquisadores e dos arquivos públicos. Já a última parte mapeia os caminhos que a autora de "A Hora da Estrela" percorreu no Nordeste, em especial, em Recife.
"Uma das coisas que primo é a fonte primária. Não vou em um livro, vou no arquivo, onde ninguém mexeu. Sem os arquivos públicos, não se faz uma biografia. Sem os arquivos públicos, eu não teria escrito nenhuma biografia da Clarice. Precisamos valorizar nossos arquivos", defende. Segundo ela, o propósito do livro não é somente biografar uma das mais importantes escritoras do Brasil, mas também provocar reflexões nos leitores sobre como se guarda a memória do País. "Não há políticas públicas para preservar isso. Daqui um tempo, você não vai mais poder contar a história sem esses arquivos", pontua.
Para Teresa Montero, ser guardiã da memória de Clarice Lispector é uma missão que já percorre três décadas de sua trajetória profissional. Ela, que conheceu a obra clariceana a partir de uma professora de língua portuguesa que leu aos alunos o conto "Os Laços de Família", passou a pesquisar sobre o assunto depois de entrar na faculdade. "Clarice é um patrimônio. É uma frase gasta, mas é fato. Ela deu voz às questões do feminino, escreveu em uma época que poucas mulheres escreviam. Ela nos fala sobre a condição humana, nos leva a uma reflexão sobre estar no mundo… Os textos dela sempre levam a uma pergunta: O que estamos fazendo aqui? Ela estava sempre indagando", reflete.
À procura da própria coisa - Uma biografia de Clarice Lispector
Editora Rocco
768 páginas
Preço médio: R$ 119,90 (e-book: R$ 56,90)
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