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Museu de Arte Negra abre exposição, neste sábado, 4, em galeria no Inhotim
Vida & Arte

Museu de Arte Negra abre exposição, neste sábado, 4, em galeria no Inhotim

Museu de Arte Negra ganha sede no Inhotim (MG) com programação que se estende até 2023. Obras do criador do MAN, Abdias Nascimento, são destaque no primeiro ciclo de exposições
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Exu Dambalah (1973).  Trabalhos de Abdias estabelecem diálogo com a mitologia iorubá, trazendo para as telas os orixás (Foto: abdias nascimento/ reprodução)
Foto: abdias nascimento/ reprodução Exu Dambalah (1973). Trabalhos de Abdias estabelecem diálogo com a mitologia iorubá, trazendo para as telas os orixás

"Ai, minha mãe, minha mãe menininha. Ai, minha mãe, menininha do Gantois". Foi cantando um trecho da "Oração de Mãe Menininha", de Dorival Caymmi, com a voz visivelmente emocionada, que a socióloga Elisa Larkin abriu a exposição dedicada a Abdias Nascimento no Inhotim (MG), na última sexta-feira, 3.

"Eu não resisti em lembrar dessa invocação à filha de Oxum. Ele costumava cantar essa música lá nos Estados Unidos quando ia falar com públicos acadêmicos e artísticos sobre o Brasil. A gente fazia até um dueto de vez em quando", contextualizou a norte-americana que durante 38 anos dividiu a vida e a luta antirracista com um dos maiores expoentes do movimento negro no Brasil. Falecido há 10 anos, Abdias Nascimento (1914 - 2011) foi, além de ativista, o defensor de uma espécie de libertação também da arte negra das limitadas narrativas brancas, eurocêntricas, e que insistiam em enquadrar a produção estética de artistas negros apenas ao campo da arte etnográfica.

Um entre os tantos legados de Abdias Nascimento foi a idealização do Museu da Arte Negra (MAN), ainda nos anos 1950. O MAN seria um espaço para divulgação e valorização da produção cultural afro-brasileira, da qual ele próprio começou a fazer parte como poeta, escritor, dramaturgo, curador e artista plástico.

Embora inaugurado conceitualmente quase 70 anos atrás, o MAN nunca conseguiu ser materializado em forma de uma sede física, apesar dos muitos esforços de seu criador. O acervo, fruto de doações de artistas e aquisições de obras pelo próprio Abdias, eventualmente é exposto em outros museus e espaços culturais do Rio de Janeiro, e possui uma versão digital, disponível no site do Ipeafro (Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros), também idealizado e fundado por ele e Elisa em 1981.

Não à toa a emoção veio tão forte aos olhos dela nesse começo de dezembro, quando a parceria entre o Ipeafro e o Inhotim, maior museu de arte contemporânea a céu aberto do mundo, resultou nessa morada para o sonho do marido. "É um privilégio estar nesse espaço que é sagrado por ser o lugar dos orixás, que são as forças da natureza. Não há nada mais apropriado pra mim do que essa exposição acontecer aqui no Inhotim".

Certamente Abdias também abriria um sorriso largo ao ver a semente que plantou anos atrás brotar em meio à vegetação exuberante que circunda as galerias do Inhotim, que abriu um pavilhão especial para sediar o MAN até dezembro de 2023. "Um museu dentro do museu", explica o curador Douglas de Freitas ao se referir à iniciativa inédita da instituição.

Julio Menezes Silva, pesquisador do Ipeafro e coordenador do projeto MAN, enfatiza: "A gente se propôs a fazer uma coisa que nunca foi feita nessa instituição. Mudar por dentro, num processo de cura, frente a um racismo estrutural e estruturante que nos alija de espaços como esse. A gente vai fazer desse espaço um quilombo, numa perspectiva reparatória, fazer dessa exposição uma ferramenta de implementação da lei 10.639. Esse é um ponto fundamental, capacitar docentes das escolas básicas, trazendo eles aqui, propondo formações".

A lei citada por Júlio, criada ainda na década de 1990 prevê a inclusão do ensino da história e da cultura negra brasileira - e não apenas pelo viés da escravidão - nas séries de ensino fundamental e médio no País. Vinte cinco anos depois de sancionada, ela ainda não é cumprida de fato.

"Botar a obra do Abdias e do Museu de Arte Negra aqui no espaço do Inhotim é fazer com que essa obra ganhe relevância para que a gente, quem sabe um dia, consiga ter estrutura financeira, humana, para poder construir o nosso museu. Esse foi o grande sonho do Abdias, que não foi possível realizar com ele em vida por conta do racismo estrutural", complementa o pesquisador.

A mostra em cartaz apresenta um importante panorama da arte negra - não somente composto por trabalhos feitos por artistas negros, mas também por obras em a cultura negra esteja representada. A temporada será dividida em quatro "atos", como estão sendo chamados os ciclos de cinco meses entre uma renovação e outra das obras expostas na galeria.

O primeiro deles, iniciado agora e que segue até abril de 2020, reúne 90 obras, 60 delas assinadas por Abdias, e dá protagonismo também à conexão entre ele e o pernambucano Tunga (1952-2016), um dos grandes nomes das artes visuais e performáticas no País e grande amigo de Nascimento. "Nada melhor que pensar o Tunga, essa figura marcante do Inhotim, que está aqui desde os primórdios, que tem dois pavilhões dedicados a ele no Inhotim, recebendo e acolhendo o Abdias. Essa exposição celebra esse encontro, essa relação de admiração mútua entre os dois artistas", contextualiza Douglas de Freitas, enfatizando o caráter afetivo desta primeira etapa da mostra.

"Amigos de longa data, Tunga e Abdias abrem espaço para o Museu de Arte Negra, e para os próximos atos desse projeto. Cosmogonias, tradição e ancestralidade conduzem os caminhos neste encontro de mundos", finaliza Douglas.

*A jornalista viajou a convite do Inhotim

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Museu de Arte Negra - Primeiro Ato: Abdias do Nascimento e Tunga

Quando: Até 10/4/2022. (Quinta e sexta:9h30min às 16h30min. Sábado, domingo e feriados: 9h30min às 17h30min)
Onde: Galeria Mata (Instituto Inhotim - r. B, 20, Fazenda Inhotim, Brumadinho/MG)
Quanto: Ingresso a partir de R$ 22, no Sympla. Entrada gratuita na última sexta cada mês, exceto feriados, mediante retirada prévia no Sympla

Quem foi Abdias Nascimento

Poeta, escritor, dramaturgo, curador, artista plástico e professor universitário, Abdias Nascimento (1914-2011) foi também deputado federal e senador, e um dos maiores ativistas na luta contra o racismo no Brasil, sendo um dos pioneiros na organização do novimento negro e da luta pela consciência racial no País. Fundador do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), é considerado um dos grandes brasileiros do século 20. Em 2010 foi indicado oficialmente ao prêmio Nobel da Paz.

"Invocação noturna ao poeta Gerardo Melo Mourão: Oxóssi (1972)", obra dedicada ao intelectual cearense Gerardo Melo Mourão

Conexão com o Ceará

Entre as obras expostas, um quadro em especial dialoga com o visitante cearense: "Invocação noturna ao poeta Gerardo Melo Mourão: Oxóssi (1972)". Natural do Ceará, Gerardo Melo Mourão (1917-2007) foi um intelectual com atuação na literatura e no jornalismo, parceiro de Abdias numa sociedade literária na década de 1930 e, não por coincidência, pai de Tunga. 

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