Imagine a seguinte cena: um grupo de fiscais da Secretaria Municipal de Ordem Pública do Rio De Janeiro anda pelos corredores de um grande evento literário para impedir a circulação de livros considerados "ameaças" para as crianças. A situação facilmente poderia ter acontecido durante a ditadura militar brasileira (1964 - 1985), mas ocorreu em 2019, quando o ex-prefeito da capital carioca Marcelo Crivella defendeu que um beijo entre dois homens no romance gráfico da Marvel "Vingadores, A Cruzada das Crianças" deveria ser proibido ao público infantil. "Não é correto que elas tenham acesso precoce a assuntos que não estão de acordo com suas idades", explicou em publicação nas suas redes sociais. Logo depois, o Supremo Tribunal Federal proibiu a censura das obras.
Em poucos dias, muitas ações se sucederam naquele centro de convenções: pessoas se manifestaram contra a decisão do prefeito; livros com temática LGBTQIA foram esgotados; editoras lançaram notas de repúdio à homofobia; agentes do governo se mantiveram à paisana nos dias que se seguiram; e o youtuber Felipe Neto comprou 14 mil exemplares que abordavam o tema para distribuir gratuitamente durante o evento. Foi um cenário de censura e, consequentemente, de resistência. Dois anos depois, essa história ganha novos significados com o lançamento de "O Primeiro Beijo de Romeu", romance de estreia do ator, roteirista e dramaturgo Felipe Cabral, que foi publicado pela Galera Record.
Tudo começa quando Romeu - que ainda está se descobrindo um adolescente gay - tenta beijar o melhor amigo que acabou de se assumir na biblioteca da escola. Aquele momento, que poderia estar em qualquer filme juvenil, vira um efeito cascata de problemas. Primeiro, um dos colegas homofóbicos percebe o ato e arranca os dois garotos do armário. O protagonista, em uma tentativa de defesa, dá um murro nele. O colégio tradicional pede para que os pais compareçam à escola e toma uma decisão: suspender Romeu pelo "incômodo" que causou.
O livro conseguiria se ater apenas a esse arco narrativo. Mas ele se expande para outra questão: o pai do personagem vai lançar sua nova obra destinada a crianças na Bienal do Livro. O homem está animado, porque escreveu uma história para o público infantil se reconhecer entre os personagens LGBTQIA . É um enredo que não encontrava na sua própria infância. E, depois de se tornar adulto, com um filho e casado com um advogado, quis buscar uma maior representatividade na literatura.
Em meio a um contexto de confusões políticas, homofobia e racismo, Felipe Cabral se debruça em uma história simples de amor entre dois garotos que ainda estão em um período de autoaceitação. Não só: também demonstra a importância da família e dos amigos como uma base de apoio para jovens que ainda não saíram do armário. "Se você é LGBT, está dentro do armário e vê que tem uma igreja falando que você é pecado, você sabe que o Brasil é o país que mais mata LGBT, é óbvio que você vai ter medo. Então, se você não tem uma referência positiva nos filmes, nas livrarias, nas novelas, nos seriados, nos streamings, você se sente muito à margem da sociedade", destaca o escritor.
O livro parte de dois pontos de vista: o de Romeu e o de seu pai, Valentim. Ambos gays, mas em momentos de vida diferentes. Enquanto o primeiro ainda está no processo de descoberta de sua própria sexualidade, o segundo já é mais politizado e maduro. "Para quem está dentro do armário, a pessoa já está cheia de medos e ainda tem um prefeito da sua cidade sendo homofóbico. Que peso isso teria? Aí surge o Romeu, um garoto de 15 anos que está dentro do armário e vê o pai dele sendo censurado. Ele mesmo é arrancado do armário, que é uma violência muito grande. Tinha que ser esses dois narradores. Posso botar como o Valentim, um pai que tem quase 40 anos, que, como eu e outras pessoas dessa geração, tem uma visão mais politizada, encara essa censura; e como uma outra geração de 15 anos vê isso", diz.
Felipe Cabral transcorre sobre a tensão da Bienal do Livro de 2019 durante o fim de semana de censura. O próprio escritor estava presente, porque tinha sido convidado para mediar um bate-papo sobre literatura LGBTQIA . Foi dali que surgiu a ideia para "O Primeiro Beijo de Romeu". "Eu estava em uma feira literária, um livro estava sendo censurado, os livros LGBTQIA que nunca nem tive na minha adolescência quando estava me entendendo como jovem gay agora eram celebrados naquela Bienal. Eu estava fazendo uma novela ("Bom Sucesso", da TV Globo) que também valorizava a literatura. Então, contar uma história que foi inspirada em uma tentativa de censura a um livro em uma feira literária, para mim, só podia ser em um formato de romance", afirma.
Não bastava falar de tudo isso: o autor ainda estampou em sua capa o beijo entre dois meninos adolescentes. É uma ilustração semelhante àquela que causou o ato de censura e homofobia de Marcelo Crivella. "A gente teve a possibilidade, inclusive, de ressignificar aquela censura de um beijo que estava dentro de um livro e colocar esse beijo estampado na capa do meu livro como um gesto político", ressalta. E, dentro da história, há romances protagonizados por lésbicas, trans e gays, além de trazer vários personagens negros.
Para Felipe Cabral, as editoras brasileiras, em um contexto geral, começaram um movimento para incluir o protagonismo LGBTQIA em seus livros - tanto nos enredos, quanto nos autores. "É muito importante que esse movimento continue, que ele ganhe mais força ainda, porque acho muito bom que a gente possa olhar livros de não-ficção resgatando a história do movimento LGBT, livros de poesia escritos por pessoas LGBTQIA , livros que são mais adultos e mais pesados, ao mesmo tempo livros que são com protagonistas adolescentes. A gente está tendo uma diversidade muito grande, mas que ainda falta chegar em muitas outras letrinhas".
"O Primeiro Beijo de Romeu", de Felipe Cabral
Galera Record
434 páginas
Preço médio: R$ 49,90 (e-book: R$ 34,90)