Maria da Conceição teve um câncer em estado avançado, mas não conseguiu ser operada nos hospitais que visitava. Elizabeth, por sua vez, não teve permissão para visitar seu filho, preso há mais de dois anos até então. Sem documentos de registro, ambas não tiveram acesso aos seus direitos. Elas existem, têm sonhos, ambições e desejos, mas, para o Estado brasileiro, são invisíveis por não terem registro civil. Com isso, muitos de seus direitos são negados e as dificuldades são acentuadas. Falar sobre os "brasileiros indocumentados" é discutir sobre uma problemática que afeta milhões de cidadãos.
O assunto é tão importante que a situação foi abordada na redação do último Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que teve como um de seus textos de apoio um trecho do livro "Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento", de Fernanda da Escóssia. A autora é jornalista e doutora em História, Política e Bens Culturais e lançará sua obra amanhã, 21, no Porto Iracema das Artes, com apresentação da jornalista Ana Quezado.
O livro é uma versão modificada da tese de doutorado de Fernanda. O trabalho elaborado apresenta experiências de brasileiros que não possuíam documentos de registro e, por isso, não eram vistos pelo Estado. A obra compartilha histórias de pessoas indocumentadas que iam ao ônibus da Justiça Itinerante, no Rio de Janeiro, para conseguirem se registrar, e apresenta estratégias usadas por essas pessoas para provarem que são, de fato, quem dizem ser.
A pesquisa mostra a "síndrome do balcão", expressão usada pela autora para discutir as "migrações" de cidadãos, de "balcão em balcão", em busca do registro. Eles enfrentam problemas com burocracia. A obra também aborda respostas a questionamentos a respeito de como um adulto vive sem documentos. No Brasil, quem não tem documento não pode votar, ter emprego formal, se matricular em escola ou ter acesso a benefícios sociais governamentais. Sem certidão de nascimento, também não é possível tirar outros documentos, como carteira de identidade.
O interesse pela pesquisa surgiu a partir da rotina de Fernanda como repórter, quando descobriu o tema dos brasileiros indocumentados. "O que me chamou a atenção foi a contínua negação de direitos a que essas pessoas são submetidas por muitas gerações", relata. A partir de etnografia, ou seja, trabalho em campo, ela desenvolveu suas análises: "Pude observar, em um trabalho de observação participante, como era o atendimento dessas pessoas e reconstruir suas trajetórias, relatando de que forma elas vivem sem documentos numa sociedade que exige identificação".
De acordo o último levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há cerca de três milhões de brasileiros sem registro civil de nascimento. Em comparação com o início do século, houve redução "importantíssima", segundo Fernanda, no sub-registro de crianças (aquelas que não foram registradas no ano de nascimento ou nos três primeiros meses do ano seguinte). De 20%, o índice passou para 2%. A jornalista afirma que essa diminuição se deu principalmente a políticas públicas com o Bolsa Família, que requisitavam documentos dos beneficiários.
Para a pesquisadora, o campo dos brasileiros indocumentados "desperta cada vez mais atenção" por dialogar com "várias exclusões e camadas da desigualdade brasileira". "Há presos sem documento. Há crianças e adolescentes em medida socioeducativa sem documento. O problema também é frequente entre pessoas em situação de rua - e cada grupo exige um tipo de análise e abordagem. Por fim, tenho destacado que a exclusão documental brasileira reflete a desigualdade social no país. Reflete a pobreza, o machismo estrutural e o racismo", avalia.
A ausência de documentos de registro não impacta apenas a disponibilidade de direitos para os cidadãos: o sub-registro afeta profundamente também a "estrutura emocional" de quem se encontra nesse cenário. Ao mencionar que outras pesquisas apresentam como o documento "é intrinsecamente associado à identidade", Fernanda lembra de sua vivência etnográfica:
"A pesquisa de campo me mostrou que pessoas sem documento falam de si como não-pessoas. Elas não se sentem como sujeitos de direitos. Ouvi muitas vezes: sou um cachorro, sou invisível, sou uma pessoa que não existe, sou um zero à esquerda... A pessoa se vê como um ninguém".
Foi com bastante surpresa que Fernanda soube da abordagem dos brasileiros indocumentados na redação do Enem, considerando também as suspeitas de interferência do governo Bolsonaro no conteúdo da prova. Em sua visão, o estado brasileiro segue funcionando "apesar do governo", com profissionais resistindo contra ações de boicote realizadas pelo governo do atual presidente.
Na redação do exame, é necessário apresentar propostas que possam resolver a problemática destacada. Com seus anos de estudo, Fernanda contribui para essa discussão apontando medidas importantes, como a repetição da pesquisa sobre quantas pessoas estão sem documento (a fim de ter um "diagnóstico nacional") e o fortalecimento de comitês estaduais e municipais criados no plano nacional de erradicação do sub-registro.
Além disso, a jornalista lembra da necessidade de ampliação de unidades interligadas, como postos de cartórios dentro das maternidades, para que as crianças saiam do hospital registradas, e de melhorar a "troca de informações entre os sistemas de registro civil e de carteira de identidade, emitidas pelos estados". Assim, será possível imaginar a visibilidade do Estado para quem já existe há muito tempo.
"Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento"
De Fernanda da Escóssia
FGV Editora
156 páginas
Quanto: R$ 36 (impresso) e R$ 26 (e-book)
Lançamento: amanhã, 21, às 19 horas
Onde: Escola Porto Iracema das Artes (Rua Dragão do Mar, 160, Praia de Iracema)
Evento gratuito e aberto ao público; obrigatório uso de máscara e apresentação do comprovante de vacinação contra a Covid-19