"Ô meu Jesus, vós que sois tão poderoso/ Nos defendei e nos guiai no bom caminho/ Esta coroa que levamos na cabeça/ É uma coroa de 72 espinhos", entoa em voz firme Marcos Antônio, fundador e Palhaço Mateu do Reisado Nossa Senhora da Saúde. Rei, rainha, mestre, contramestre, guerreiros, capitão, embaixadores, príncipe, princesa, jaraguá, burrinha, boi, bode, camaleão, ema e até lobisomem integram o folguedo que se embrenha pelas ruas de Fortaleza no 6 de janeiro, Dia de Reis. Localizado ao número 387 da Rua Dom Amaro, no bairro Mucuripe, o grupo completou 17 anos de atividades em meio à pandemia de Covid-19 — hoje, convive com o desafio de manter a tradição popular apesar da doença e da violência que assola a Capital.
Festa trazida ao País pelos portugueses ainda durante o período colonial, o reisado nasceu como uma manifestação católica para celebrar a adoração dos magos ao nascimento de Jesus Cristo. O folguedo tipicamente natalino, entretanto, logo ganhou elementos nacionais: sanfona, tambor, zabumba, violas, seres míticos e animais próprios da fauna nordestina entraram na brincadeira unindo o repertório de cada região. "Mas manter a tradição do reisado fica cada vez mais difícil porque você tem que acompanhar o desenvolvimento do País, do Estado, dessa violência toda… Então o reisado tenta se manter da maneira que dá, né?", lamenta Marcos. O fundador da reisado no Mucuripe aprendeu a brincar no Reisado Brincantes Cordão do Caroá, pesquisando essa cultura e tradição milenar do reisado, e considera o grupo de Fortaleza neto dos Discípulos do Mestre Pedro (conhecido como Reisado dos Irmãos em Juazeiro do Norte).
Neste ano, o Reisado Nossa Senhora da Saúde se apresentará no shopping RioMar Fortaleza amanhã, 6, ao meio-dia e às 18h — mas não deve sair na comunidade, como tradicionalmente faz. No sábado, 8, o grupo dança e canta no Curió pelo projeto Arte de Amar, às 21h. "A comunidade do Mucuripe, ainda bem, tem uma aceitação muito boa desde quando nós começamos há 17 anos. A comunidade ficou conosco, então quando nós saímos na rua os próprios moradores dão proteção aos brincantes. É difícil tirar reis por causa de toda essa violência e dessa doença que ainda está assolando o povo cearense. Nós temos que tomar muito cuidado, muitas precauções… No ano passado já não teve cortejo, nós comemoramos aqui na sede mesmo, não saímos e não fomos convidados por ninguém para evitar aglomerações", explica o fundador.
Entre laços afetivos e também consanguíneos, o Reisado Nossa Senhora da Saúde uniu vizinhos, primos e amigos e formou família: a Mestra Kátia Juliana é filha de Marcos e Socorro, que abrigam a sede do grupo em casa. Uma das únicas Mestras mulheres de reisado em Fortaleza, Juliana mantém o legado da família ao som do seu apito e no jogo de espadas. "Foram dois anos de muitas dificuldades. Alguns amigos de associações nos ajudaram com cestas básicas para os pais das crianças e graças a Deus estamos todos bem, enfim nos encontrando. Nós tivemos que parar o projeto, mas juntos estamos passando por isso. Nos inscrevemos em editais de financiamento e estamos aguardando os resultados", ressalta a Mestra. Entre as mudanças impostas pela pandemia, além da paralisação dos ensaios, o grupo diminuiu de 35 integrantes em 2019 para 26 atualmente.
"Nosso plano é sair como saímos todos os anos, mesmo que não na comunidade", ressalta a Mestra. O medo fecha muitas portas aos brincantes, que costumam percorrer casa a casa cantando e dançando. Para Marcos, aos 63 anos, perpetuar o folguedo nas ruas é disseminar a cultura como enfrentamento ao esquecer que contamina os dias. "O Reisado Nossa Senhora da Saúde tenta manter a tradição há 17 anos, sobrevivendo a tudo que é problema e dificuldade, junto também com outros grupos. Estamos vivenciando essa pandemia tomando todos as precauções, com máscara e álcool gel, seguindo para colaborar com a cultura. Quero mandar meu abraço a todos os mestres dos reisados, vamos nos apresentar no dia 6 com toda alegria, com toda força, com toda dedicação para manter essa cultura sempre para frente, nunca voltar atrás. Quero parabenizar todos que saem às ruas nos cortejos de porta em porta para manter o reisado. Mas queria lembrar também que reisado não é só dia 6: fazemos essa oferta ao nascimento de Jesus ao ano todinho", finaliza o brincante.
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