No oco do peito, a solidão de Pilar (Clébia Sousa) retumba. Camareira do Fortaleza Hotel, a jovem está de partida para Dublin, na Irlanda, para tentar a sorte no ano vindouro. Em um quarto qualquer, seus caminhos se cruzam com os de Shin (Lee Young-Lan, vencedora do Urso de Prata do Festival de Berlim), uma hóspede sul-coreana de meia idade que migra para o Brasil a fim de resgatar o corpo de seu falecido marido de volta à Seul. Pilar é uma mãe apartada da filha, Shin é viúva. Em inglês, gestos e cidades atravessadas a passos compartilhados, as protagonistas do novo filme de Armando Praça costuram um delicado envolvimento. O drama "Fortaleza Hotel" (2022) estreia hoje em 16 cinemas de 15 cidades do Brasil.
Com roteiro de Isadora Rodrigues e Pedro Cândido, fotografia de Heloísa Passos e produção de Maurício Macêdo, o filme é o segundo longa-metragem dirigido pelo cineasta Armando Praça. O diretor de "Greta", obra que recebeu o prêmio de Melhor Filme do Cine Ceará em 2019, retrata a Fortaleza de Pilar estrangeira a si mesma, um retrato de tantas cidades que integram a Capital. "Acho que muitas pessoas que vivem entre o Meireles e a Aldeota expandida conhecem muito pouco bairros mais distantes, bairros periféricos… É uma cidade muito partida em alguma medida — portanto, muito estrangeira a si mesma. No momento em que a gente começou a chamar o projeto de "Fortaleza Hotel", percebi que nas outras pessoas impunha uma impressão de que ele passaria um pouco essa imagem da Fortaleza turística, daquela região da Beira-Mar. Quando o filme traz um personagem estrangeiro, essa ideia fica mais reforçada ainda. Mas, para mim, a grande questão em relação a esse aspecto do filme é que quem nos guia dentro dessa Fortaleza é a personagem Pilar. E guia não só o espectador, como também guia a própria personagem Shin. Para mim, sempre foi importante construir uma Fortaleza que seja a Fortaleza que uma camareira de hotel conhece. Ela até trabalha num hotel no Meireles, mas a cidade que ela de fato habita, onde ela se reconhece, onde ela faz compras, onde ela mora, onde ela tem amigos, não é definitivamente no Meireles", destaca o realizador.
"A cidade que a Shin conhece é a Fortaleza da Pilar, que não está no cartão postal, não é um destino turístico. Eu não me preocupei em fazer um filme que apresentasse paisagens urbanas, bonitas, sedutoras, porque o filme se passa em Fortaleza, então eu tenho que apresentar a Fortaleza dessa maneira mais convencional ou mais publicitária. Minha preocupação é construir uma Fortaleza que seja a Fortaleza adequada dramaticamente a história que eu estou contando", explica o diretor. Para Armando, o longa está inserido num contexto propício ao cinema cearense: "Faz cerca de 20 anos que eu trabalho com cinema sempre a partir de Fortaleza. Mesmo fazendo trabalhos em outros lugares, nunca me mudei, nunca fui embora daqui. Hoje a gente consegue pensar numa produção cinematográfica cearense com muito mais evidência e com muito mais penetração do que, por exemplo, eu podia pensar quando eu comecei. Inclusive existem outros mecanismos que também não existiam naquela época de produção efetivamente, como a própria empresa pública Ceará Filmes que pensa a produção cinematográfica de uma maneira mais estratégica. A gente vive um contexto muito melhor do que há 20 anos, mas acho que ainda precisam de melhorias muito significativas em alguns aspectos: acho que a gente precisa ter os mecanismos de produção, sobretudo os editais, de uma maneira mais constante e mais efetiva; a burocracia ainda é muito difícil, muito complexa, poderia ser um pouco mais simplificada. Eu acho que tudo isso pode vir a melhorar muito com a empresa Ceará Filmes. Do ponto de vista da formação, nós temos um momento muito privilegiado com universidades e escolas, então a gente precisa ter a mesma coisa em relação à produção".
Pilar é a primeira protagonista da atriz pernambucana premiada Clébia Sousa, premiada como Melhor Atriz no Cine Ceará. "O processo de construção da Pilar foi bem solitário — eu não conhecia Fortaleza, não conhecia muita gente da equipe… Então inicialmente foi solitário, foi entender e tirar tudo que a Pilar poderia me dar dentro desse roteiro, o que estava explícito, como que outros personagens a viam, o que eu podia tirar também disso para essa construção e também absorver a caracterização", relembra Clébia. "A gente fez laboratório, então eu fui para um hotel e passei dois dias como camareira para entender que corpo de trabalho é esse, que dinâmica é essa que acontece nos hotéis. A camareira é uma figura que precisa ser invisível — se a gente sai para tomar café, volta e o quarto misticamente está perfeito e arrumado é porque o hotel é muito bom, se a gente cruza com essa camareira é porque talvez algo dê errado nesse hotel, né? Então a camareira está nesse lugar do ser invisível. Fui na comunidade em que a Pilar morada para conhecer os os reais donos da casa, entender a dinâmica daquela rua. Como eu não sou de Fortaleza, tentei trazer Fortaleza para o meu corpo, para o meu jeito; absorver a cidade da Pilar, a Fortaleza da Pilar que não é turística. A Pilar apresenta para Shin a Fortaleza que é possível para ela", complementa.
"Armando que nos preparou, então ele foi nos conduzindo primeiro sem o texto, para a gente trazer nossas impressões para o corpo, para a gente descobrir juntos. Com a chegada da Lee Young-Lan, houve um choque cultural entre nós duas, cruzar um oceano, vir para outro País, outras pessoas, calor, tudo isso trouxe uma incomunicabilidade que o Armando usou muito bem no filme. O que interessava tanto para o Armando quanto para a equipe era mostrar a Cidade do ponto de vista da Pilar, essa Fortaleza que ela transita não é vendida nos jornais para os turistas. É o Centro, a comunidade, a praia, o hotel… Esse corpo dela é construído através desses espaços", adiciona a atriz.
Entre abandonos e companhias possíveis, "Fortaleza Hotel" reconta a vida de mulheres. "Abandonar já é um processo muito difícil e solitário, se descobrir sozinha no mundo já é muito difícil. Com a chegada da Shin, elas apoiam uma solidão na outra, se apoiam nessas dores e nessas reconstruções. Ser uma atriz pernambucana, ser uma atriz sul-coreana contribuiu muito para a gente sentir na pele isso. É um filme muito bonito, é um filme que a mulher não está à mercê da história de um homem. O filme é muito feminino, essa relação com a Shin, essa relação com a filha, essas relações com as amigas… São muitas mulheres que se relacionam com muitas mulheres. A beleza do filme é trazer essas solidões, esses recomeços, entender que elas estão desmoronando, mas elas estão se reconstruindo. É um filme que fala de solidariedade, algo para além da solidão", finaliza Clébia.
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Fortaleza Hotel
Onde: Centerplex Via Sul e Cinema do Dragão. Na quinta, 3 de fevereiro, Armando Praça conversa com o público do Cinema do Dragão.
Informações: viasulshopping.com.br/cinema e dragaodomar.org.br/programacao-cinema
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