"Eu sou uma bicha, louca, preta, favelada/ Quicando eu vou passar e ninguém mais vai dar risada/ Se tu for esperto, pode logo perceber/ Que eu já não tô pra brincadeira/ Eu vou botar é pra foder". O manifesto da multiartista Linn da Quebrada no single "Bixa Preta" (2017) anuncia: o corpo não-binário — ou seja, dissidente do binário de gênero masculino/feminino socialmente construído — de Lina Pereira dos Santos resiste.
Integrante do 22º Big Brother Brasil, Linn da Quebrada sofreu agressões transfóbicas no programa. Eslovênia Marques, participante do elenco "pipoca", referiu-se à artista utilizando o pronome masculino mais de uma vez. "Amiga, não dá para ficar mais errando", ponderou Linn. Primeira travesti a participar do reality e segunda não cisgênero — após Ariadna Arantes no BBB 11 —, a paulista enfatizou: é ela.
"Quero ser tratada no pronome feminino". Neste 29 de janeiro, Dia da Visibilidade Trans, a comunicadora e multiartista Ella Monstra e a pesquisadora, professora e artista multilinguagem Isadora Ravena abordam as criações de mundos a partir da linguagem e os pronomes escolhidos por pessoas trans. "Para quem ainda está preso em uma concepção 'biologizante', sinto informar que a própria biologia é algo mutável e que anda de acordo com os interesses políticos de cada época e que nenhum genital é desprovido de discurso", relembra Isadora. Aos corpos e corpas trans, a celebração da vida.
Linguagem capaz de fabricar mundos
Já estava em discussão, na década de 1950 do século passado, o fato de que a linguagem não é apenas descritiva. A linguagem não só fala sobre o mundo, ela é capaz de fabricar mundos. Assim como a fala “vocês são, agora, marido e mulher” proferida por um padre durante um casamento faz existir um casal a partir dali e em tese para toda a vida; assim como a fala “considero o réu condenado”, proferida por um juiz durante uma audiência, faz existir a partir daí um cidadão que precisa pagar por seus crimes; foi também com atos de fala simples “é menino”/ “é menina” que atestaram ao corpo da Lina uma função social intimamente ligada ao seu órgão genital.
Foi um “é menino” que tentou aprisionar todos os nossos (falo de nós, travestis como Lina) comportamentos dentro da função social do homem. Qualquer comportamento que pudesse fugir ao que se espera de um homem era inevitavelmente um fracasso, é por isso que Lina faz questão de dizer que fracassou como homem. Um pronome não é só um pronome, é também um fator capaz de fabricar um mundo, fabricar um corpo, fabricar uma nova história, assim como quando usado de forma equivocada é capaz de desvalidar ou tentar destruir uma série de modos de existir. Nem todas as línguas dividem o mundo em “ele” e “ela”, há um conjunto de outras línguas, que existem antes mesmo da fundação desse território que chamamos de Brasil, que não se utilizam dessa divisão.
Linn da Quebrada, Lina Pereira, está agora em rede nacional se afirmando enquanto travesti. Uma palavra forte, uma identidade que foi por décadas nesse Brasil ligada à marginalização, à prostituição, alvo de um projeto de extermínio ininterrupto. Basta dar uma olhada rápida nos anais da história e pesquisar, por exemplo, sobre a operação “Tarântula” que, no final dos anos 1980, dizimou declaradamente e com o aval do Estado centenas de travestis.
Quando Lina se afirma como travesti ela está, assim como muitas de nós, operando uma corruptela com o termo, na tentativa de arrancar esse termo de um campo pejorativo e instaurá-lo como lugar de vida. Lina é muito inteligente, sábia e atenciosa e, durante essas primeiras semanas de jogo, tem dado um show de paciência e de didática ao se colocar disponível para com sua própria existência, desfazer-nos de certezas tão incrustadas em nossa sociedade. Acontece que não estamos mais em tempo de errar: é nítido para qualquer espectador que, às vezes, o erro repetido e forçado do pronome, a insistência de referir-se à Lina como “ele” vela uma vontade íntima de tentar desvalidar sua existência. É também uma forma de a desestabilizar no jogo, de tentar fazer com que ela caia numa postura de “militante” tão rechaçada pelo País desde a última edição do BBB.
Para quem ainda está preso em uma concepção “biologizante”, sinto informar que a própria biologia é algo mutável e que anda de acordo com os interesses políticos de cada época e que nenhum genital é desprovido de discurso. Para Lina, querida, desejo toda força para que continue dando esse show de sabedoria, de inteligência, de simplicidade, de humildade. Para os demais participantes da casa desejo que deixem Lina jogar e brilhar sem ter que estar a todo tempo voltando para uma questão básica e exigindo o que deveria já estar naturalizado: o respeito!
Isadora Ravena é pesquisadora, professora e artista multilinguagem
Que continuemos a travecar
Desde o anúncio de Linn da Quebrada como uma das participantes desta edição do Big Brother Brasil, tenho pensado sobre as repercussões disso em nossas vidas travestis aqui fora. Ter uma travesti no maior reality da televisão aberta brasileira escancara algumas estruturas de nossa sociedade, e esse é um movimento interessante. Não demorou nem uma semana até Linn passar por uma situação que nos é muito comum: o desrespeito ao nosso pronome.
Quando Linn teve seu pronome desrespeitado, muitas pessoas nas redes sociais comentaram sobre como era absurdo isso acontecer com ela, já que "ela é tão feminina", "ela tem até peito", como vi expresso em tweets. Segundo essas pessoas, "não tem como confundir", e apenas nisso acertaram, porque não é sobre confusão, mas é sobre uma violência que se comporta como um míssil teleguiado, com alvo definido e localizado. A cisgeneridade nos indica que a passabilidade é apenas uma armadilha, porque nem mesmo a mais passável de nós estará resguardada em um sistema construído ardilosamente para nos eliminar. Nossa segurança está nas brechas e rachaduras dessa torre que está por ruir.
O fato de Linn ser uma travesti, uma identidade que extrapola e reinventa a binariedade dos gêneros, bagunça tudo ainda mais. E que bom! Vemos isso acontecer também com pessoas não-bináries, que têm colocado a cada dia mais a importância de usarmos pronomes neutros e de utilizarmos uma linguagem que não seja tão limitada e demarcada pelo gênero. Vivemos na nossa Babel do século 21, com uma língua viva, pulsante e em movimento incessante de transição.
Assim como Linn tem "ELA" tatuado em sua testa, tenho meu nome tatuado em meu pescoço. Amuletos ali, pairando em nossos corpos, tatuados em nossas peles. Anúncios de mundos que ainda estão por vir e se constroem a cada dia em nossos corpos, em nossos sonhos. Em 2018 fiz uma tatuagem na testa em homenagem à Linn. Na época, ouvia o "Pajubá" religiosamente todos os dias, e inundada pelas palavras que escutava, ia dando passos na minha caminhada de transição. É graças a ela que sou Ella e desejo que muitas outras o sejam também. Elas são elas. Elas por elas, elas com elas. Nada mais para explicar, apenas a respeitar. Que continuemos a navegar, a atravessar e, principalmente, a travecar.
Ella Monstra é comunicadora e multiartista
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