“Precisa-se de um moço honesto que saiba fazer versos futuristas. Exige-se um atestado de ignorância". Na página 2 do jornal O Estado de S. Paulo ao 18 de fevereiro de 1922, pilhéria, vaias e chuva de batatas anunciavam o maior acontecimento cultural do século XX no Brasil: a Semana de Arte Moderna de 1922. A fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB), o levante tenentista do Forte de Copacabana e a primeira transmissão radiofônica nacional proclamaram a nova época, mas foi a Semana de 13 a 18 de fevereiro no Theatro Municipal de São Paulo que se imortalizou no imaginário sociocultural do País.
Menotti Del Picchia (1892-1988) — poeta, contista, romancista, cronista, ensaísta, jornalista e um dos principais escritores da Primeira Geração do Modernismo Brasileiro — bradou: "Basta de se exaltar artimanhas de Ulisses, num século em que o conto do vigário atingiu a perfeição de obra-prima". Soco certeiro no estômago da comportada sociedade brasileira e seus bibelôs coquetes, a Semana de 22 foi realizada por um pequeno grupo de artistas e intelectuais e incluiu uma exposição com cerca de 100 obras, aberta diariamente no saguão do teatro, e três sessões lítero-musicais noturnas. Os representantes do Modernismo prezavam pela experimentação em linguagens como poesia, música, arte plástica, escultura e arquitetura. Num País que em 1880, apenas 40 anos antes da Semana, ainda discutia se a escravidão deveria ou não ser abolida, o movimento causou alvoroço.
Os modernistas, nas palavras do pesquisador paulistano Francisco Alambert no artigo "A reinvenção da Semana (1932-1942)", forçosamente tinham que se debater com "o passado recente que não passava e com o novo que já tardava". Inserida nas festividades em comemoração ao centenário da Independência do Brasil, a Semana achincalhou simbolistas, românticos e parnasianos, os considerados antimodernistas que dificultavam o florescer de um espírito novo em oposição à cultura de teor conservador predominante no Brasil desde o século XIX. O ato performático de 1922, no entanto, ainda precisaria assumir um caráter efetivamente transformador, muito além dos burgueses salões e teatros municipais.
Entre os literatos e poetas que participaram da Semana, destacam-se — além do já citado Menotti Del Picchia — Mário de Andrade (1893-1945), Oswald de Andrade (1890-1954), Graça Aranha (1868-1931), Guilherme de Almeida (1890-1969), Ronald de Carvalho (1893-1935), Tácito de Almeida (1889-1940) e Manuel Bandeira (1884-1968) com a afamada leitura do poema “Os Sapos”. Os pintores engajados na performance foram Anita Malfatti (1889-1964), Di Cavalcanti (1897-1976), Ferrignac (1892-1958), Vicente do Rego Monteiro (1899-1970), Zina Aita (1900-1967), John Graz (1891-1980), Antônio Paim Vieira (1895-1988) e Yan de Almeida Prado (1898-1987). Já na área da escultura, engajaram-se Victor Brecheret (1894-1955), Wilhelm Haarberg (1891-1986) e Hildegardo Velloso (1899-1966).
A programação musical apresentou composições de Villa-Lobos (1887-1959) e do francês Debussy (1862-1918), interpretadas pela pianista Guiomar Novaes (1894-1979) e por Ernani Braga (1888-1948). No comitê patrocinador do evento, os nomes evidenciados foram Paulo Prado, Alfredo Pujol, René Thiollier e José Carlos Macedo Soares.
Ao 29 de janeiro de 1922, uma nota no jornal Correio Paulistano anunciou a realização de uma semana de arte no Teatro Municipal com a participação de escritores, músicos, artistas e arquitetos de São Paulo e do Rio de Janeiro — tendo Graça Aranha à frente, destacava o periódico, o objetivo do evento era dar ao público paulistano “a perfeita demonstração do que havia em nosso meio em escultura, pintura, arquitetura, música e literatura sob o ponto de vista rigorosamente atual”.
A Semana, entretanto, nunca foi unanimidade e realizou-se perante aplausos e vaias que ecoam ainda hoje. O Estado de S. Paulo, no dia 17 de fevereiro daquele ano, espezinhou: "O direito de vaia e de pateada é reconhecido em todos os países civilizados. Será que não há mais batatas nesta terra?".
Na revisão do próprio Di Cavalcanti, a Semana seguiu para “um tom festivo, irreconciliável talvez com o sentido de transformação social” que, para o artista, necessitava estar no fundo de uma revolução cultural. O pintor, contudo, elaborou depois uma versão mais positiva: para o desenhista, ilustrador, muralista e caricaturista, a Semana de Arte Moderna foi um acontecimento que abriu para o Brasil perspectivas que extrapolaram o campo puramente artístico com repercussões inclusive na política. Os debates persistem: o evento provocou choques e rupturas? Alcançou parâmetros críticos em relação à arte? Foi de caráter mais destrutivo ou construiu novos ideais estéticos?
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"Teu cabelo à Rodolfo,
tuas olheiras românticas,
teus quadris inquietos e atordoadores,
teus seios bico-de-pássaro
— dão-me a idéia cabal deste século ultra chic!
Ontem, quando deixavas o cinema,
— o colo nu,
os braços nus,
a perna escandalosamente nua,
eu tive a súbita impressão de que,
na bolsa de ouro a te pender na mão,
vinha, (de precavida que és!),
— o teu vestido…"
("Modernismo", Jáder de Carvalho)
Quando a Semana de Arte Moderna aconteceu no Teatro Municipal de São Paulo, a cidade de Fortaleza já tinha um cenário literário consolidado desde a segunda metade do século XIX. "Em 1922, Fortaleza concentrava suas atividades literárias principalmente em um café na Praça do Ferreira, o Café Riche, localizado no térreo do Hotel Central. Os grandes poetas ainda do século XIX, encabeçados por Antônio Sales, se reuniam para tomar café e falar de literatura. Lá, você poderia encontrar de José Albano, um neoclássico, ou um jovem como Mário da Silveira. Também encontrava figuras como Cruz Filho e simbolistas e parnasianos, uma nova geração que escrevia poemas penumbristas", ressalta Rodrigo Marques, professor de Literatura da Universidade Estadual do Ceará e editor da Aluá Cordéis.
"Há muita discussão se a Padaria Espiritual (fundada no dia 30 de maio de 1892 com inauguração festiva no Café Java, de Mané Coco, na Praça do Ferreira) antecipou o Modernismo. Ao meu ver, isso não procede — é uma visão anacrônica, não se pode atribuir a um movimento anterior uma antecipação, mesmo porque isso seria diminuir a Padaria Espiritual e dar um acento maior ao Modernismo. O que acontece é que, no final do século XIX e início do século XX, houve uma modernização da Cidade e a palavra 'modernismo' aparecia, mas no sentido de novidades como o cinema, o automóvel e as mudanças de hábitos, principalmente as mudanças nos hábitos femininos", explica Rodrigo.
"A modernização de Fortaleza se deu muito por conta do ciclo do algodão e do escoamento da produção interiorana através da linha de ferro Baturité; uma elite local que vai se estabelecendo no centro da Capital; e uma cena literária consolidada. Essa cena literária permitiu que Fortaleza ganhasse alguns índices de modernidade, como os cafés, o teatro, as praças, a pequena imprensa, a imprensa e uma classe letrada que foi se formando sempre aberta à busca de capital simbólico", complementa o pesquisador.
Rodrigo destaca que em 1922, ano da Semana de Arte Moderna em São Paulo, duas importantes antologias de poemas foram publicadas no Ceará: Jader de Carvalho, León de Vasconcelos e Edigard de Alencar escreveram poemas penumbristas — "Isso já era uma novidade, porque os poemas falavam de chuvas e climas triste, mas em uma Fortaleza ensolarada isso ficava um tanto esquisito. Houve uma pequena relação desses poetas mais antigos, principalmente de Antônio Sales e Luiz Filho, que não viam com bons olhos essa novidade. Mas, mesmo assim, acolheram esses rapazes", explica.
O acolhimento dos poetas já consagrados na terra, no entanto, não foi longevo: quando chegou ao Estado o Futurismo, uma proposta muito radical para uma realidade provinciana de Fortaleza, Antônio Sales buscou blindar o Ceará da nociva “cruzada de renovação do senso estético”. Em 1923, o autor de "Aves de Arribação" enviou ao jornal Correio do Ceará dezoito "Estâncias Futuristas" sob o pseudônimo de Arthunio Valles, poemas satirizando o modo de escrita dos futuristas. A disputa se estabeleceu no cenário literário — ao defender o Penumbrismo na seção “Saco de Gatos” da revista Jandaia, ainda em 1923, Edigar de Alencar não poupou piadas a Leonardo Mota, Antônio Sales, Sales Campos, Cruz Filho e Elias Malmann. O Modernismo chegou ao Ceará, nesse sentido, primeiro como crítica.
O Ceará foi um dos primeiros estados do Nordeste a conhecer o Modernismo, influência também do fluxo de escritores entre Fortaleza e Rio de Janeiro. Em 1925, o poeta paulista Guilherme de Almeida visitou a Capital para proferir conferências pautadas numa corrente mais ufanista/nacionalista do Modernismo e foi reconhecido na terra de José de Alencar. Essas relações entre os escritores cearenses, como outros do País, ajudaram na publicação de "O Canto Novo da Raça" em 1927. Para o professor, poeta, ficcionista, crítico literário e ensaísta Sânzio de Azevedo, em pesquisas sobre o período, o livro de autoria de Jáder de Carvalho, Franklin Nascimento, Sidney Neto e Mozart Firmeza é marca fundante do movimento modernista no Estado.
No dia 7 de janeiro de 1928, o jornalista, odontólogo, poeta e político Demócrito Rocha fundou o jornal O POVO, primordial na consolidação do Modernismo no Ceará. "O jornal O POVO teve uma importância fundamental para a divulgação inicial do Modernismo. O jornal trouxe um encarte, que é um uma folha modernista, chamada Maracajá — e dois números do Maracajá foram publicados em 1929", destaca o pesquisador.
"Demócrito Rocha, que assinava com pseudônimo Antônio Garrido, foi um grande entusiasta de um Modernismo nacionalista, de um Modernismo ufanista, de um Modernismo de uma tendência de exaltação da pátria. Demócrito Rocha escreveu poemas sobre o Ceará bem no estilo de um poeta americano chamado Walt Whitman e também de Ronald de Carvalho. Ele criou uma sessão no jornal que acredito até mais importante do Maracajá: se intitulava 'Modernos e Passadistas'. Demócrito acolhia esses poetas modernistas, inclusive Rachel de Queiroz.
Na década de 1920, o periódico teve uma importância basilar para a divulgação dos modernistas e, ao mesmo tempo, divulgava também os poetas passadistas. O jornal conseguiu reunir poetas de uma geração mais antiga como os poetas novos", resgata Rodrigo.
O suplemento literário Maracajá reunia escritores como Antônio Garrido (Demócrito Rocha), Mário de Andrade do Norte, Paulo Sarasate, Filgueiras Lima, Rachel de Queiroz, além dos quatro autores de "O Canto Novo da Raça". Com a extinção desse suplemento, surgiu o Cipó de Fogo, dirigido por João Jacques Ferreira Lopes e Mário de Andrade do Norte. Essa fase representa a primeira etapa do Modernismo cearense, seguida pela etapa engajada pelo Grupo Clã, com o qual se consolida definitivamente o Modernismo no Ceará.
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Especial completo no OP+
Assinantes da plataforma O POVO+ têm acesso exclusivo ao especial sobre o centenário da Semana de Arte Moderna. O material inclui reportagem seriada dividida em três capítulos e ainda um série de vídeos que compõe diálogo audiovisual formativo realizado por Rodrigo Marques, professor de Literatura da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e pesquisador.