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Documentário "Rio de Vozes" retrata vidas nas margens do São Francisco
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Documentário "Rio de Vozes" retrata vidas nas margens do São Francisco

Com direção de Andrea Santana e Jean-Pierre Duret, filme estreia no Cinema do Dragão no próximo dia 17
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                                (Foto: Tiago Santana/ Divulgação)
Foto: Tiago Santana/ Divulgação

Reza a lenda que, nas proximidades da Serra da Canastra em Minas Gerais, vivia uma indígena chamada Iati. Durante uma guerra, o noivo de Iati precisou partir para a batalha — e os guerreiros eram tantos que seus passos afundaram a terra e eles morreram engolidos pelo grande sulco. A indígena, desconsolada pela perda, chorou em abundância até os últimos dias de sua vida. Suas lágrimas inundaram a fresta e assim nasceu o rio São Francisco. O Velho Chico, que banha o semiárido brasileiro, ambienta o documentário "Rio de Vozes". Com direção de Andrea Santana e Jean-Pierre Duret, o filme retrata vida, tradições, lutas e memórias dos ribeirinhos.

O grande São Francisco atravessa cinco estados e 521 municípios brasileiros. Outrora impetuoso, o rio está cada vez mais fragilizado pelo desmatamento de suas margens e a superexploração das terras por uma agricultura neoliberal. Com fotografia de Tiago Santana, "Rio de Vozes" é um gesto imagético etnográfico que valoriza modos de vida das comunidades ribeirinhas. O documentário foi gravado no trecho que vai de Belém do São Francisco, em Pernambuco, até Barra, na Bahia.

"Rio de Vozes" é o quinto documentário com direção de Andrea Santana e Jean-Pierre Duret(Foto: Carlos Gibaja/ Divulgação)
Foto: Carlos Gibaja/ Divulgação "Rio de Vozes" é o quinto documentário com direção de Andrea Santana e Jean-Pierre Duret

"O objetivo do filme não era fazer uma reportagem sobre os problemas do rio. Eles são percebidos, sentidos, mostrados, através dos impactos que eles têm na vida de nossos personagens, no cotidiano deles; através da forma como eles se indignam e lutam para poder continuar vivendo do rio e com o rio. E essa resistência passa pela transmissão dos saberes, das técnicas ancestrais de trabalho, das formas de se relacionarem em comunidade, na preservação das memórias e pela afirmação das identidades: pescadores, quilombolas, pequenos agricultores, indígenas….", ressalta Andrea Santana. Arquiteta e urbanista de formação, a realizadora produz documentários focados sobretudo na cultura do povo nordestino.

Ao longo de quatro meses em 2019, Andrea e Jean-Pierre percorreram as margens do São Francisco com apenas uma pequena câmera e um microfone acoplado. Gravaram cenas de vida, sem narração em off, num encontro ao acaso com personagens da terra. "Uma coisa fundamental pra nós é o tempo. Ficar o tempo que for necessário com cada personagem e sem nos prendermos a nenhum cronograma. Antes de mais nada a gente precisa de um tempo para nos desvencilharmos, nos liberarmos de todas as ideias preconcebidas sobre o que a gente quer filmar; para que nossos olhos se abram. Depois o tempo é importante para criar uma relação de confiança e de intimidade com as pessoas, que permita que elas se dêem da forma como elas se dão, que é extremamente generosa, e que ultrapasse a superficialidade e nos permite filmar a complexidade de cada um. Quando eu falo de tempo eu falo, no caso deste filme, de quatro meses na beira do rio, sem voltar pra casa, em imersão. Nós não saímos os mesmos de uma filmagem como essa", continua Andrea.

"O que a gente busca filmar são coisas simples: o que eles vivem, sentem, no trabalho, nos corpos, na terra, nos olhos, na voz. Procurar essas coisas de um jeito íntimo", compartilha Jean-Pierre. Engenheiro de som nos filmes de Maurice Pialat, Irmãos Dardenne, Alain Resnais e Agnès Varda, Duret já dirigiu os documentários de longa-metragens "Romances de terra e água" (2001), "O sonho de São Paulo" (2004), "No meio do mundo" (2008) e "Se battre" (2014) ao lado de Andrea. "O São Francisco está muito degradado, principalmente pela grande agricultura, que tira a água do rio para a irrigação, que devasta a vegetação nativa que protege o rio e que é importante no ciclo das chuvas; uma agricultura que polui o rio com uma grande quantidade de produtos químicos", alerta o diretor.

Há cerca de 20 dias, os realizadores viajaram pelas margens do Velho Chico novamente para mostrar o filme para as comunidades filmadas. A exibição seria ainda em 2019, mas a pandemia retardou a troca entre diretores e personagens do longa. "Danduca, uma das personagens do filme, nos disse depois da projeção: 'O filme me fez renascer'. Dona Raimunda, uma outra personagem, também nos disse: 'Vocês nos filmaram como se tivessem nos fazendo um carinho'. Reações como essas são um verdadeiro presente para nós realizadores. O rio São Francisco é como um 'membro' da família para eles; é uma mãe. É ele que produz a água que eles bebem, que produz os peixes que eles comem, que molha as terras onde eles plantam o necessário para viver. E eles sabem que se perderem o rio, perdem essa identidade e é isso que lhes dá força para resistir. A história de resistência dessas comunidades é uma história que diz respeito a todos nós. Se o rio desaparecer, se os modos de vida e a cultura dessas comunidades ribeirinhas desaparecerem, todos nós seremos afetados. É nossa condição humana que estará cada vez mais fragilizada nesse sistema econômico destruidor de recursos naturais e apagador de culturas ancestrais", defende Andrea.

No documentário, a luta diária das mulheres ribeirinhas ganha amplitude. Andrea adiciona: "Ao longo das filmagens, as mulheres se destacaram de forma extraordinária com uma garra, uma determinação, uma forte consciência política das coisas que estão acontecendo com o rio, além das coisas mais sutis do cotidiano da vida. Sempre na linha de frente na responsabilidade de sustentar as suas famílias, os seus filhos e manter vivos os seus valores, a sua cultura. As mulheres são as que mais sofrem as consequências nesse nosso Brasil machista e cheio de preconceitos".

"O cinema que tentamos fazer busca destacar pessoas que são desconsideradas, e cada vez mais, por este mundo onde o dinheiro parece "rei" e que destrói tudo o que é frágil, bonito ou proveniente das culturas tradicionais; culturas que perpetuaram a vida por conhecerem a estreita ligação entre o homem e a natureza", explica Jean-Pierre. "Tentamos fazer filmes que expressem a complexidade da vida, repleta de palavras, sonhos, rostos, destinos, lutas; onde o espectador possa realmente entender intimamente quem são essas pessoas que filmamos e o que temos todos em comum. Porque isso é o que é importante entender é que temos coisas em comum", finaliza o diretor.

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"Rio de Vozes", documentário de Andrea Santana e Jean-Pierre Duret

"Rio de Vozes"

Lançamento dia 17/02, quinta-feira, no Cinema do Dragão.
Quanto: R$ 16 (inteira) e R$ 8 (meia)
Info: dragaodomar.org.br

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