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Ignácio de Loyola Brandão reflete sobre 40 anos da "Não Verás País Nenhum"
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Ignácio de Loyola Brandão reflete sobre 40 anos da "Não Verás País Nenhum"

"Não Verás País Nenhum" completou 40 anos de lançamento em 2021, e a homenagem veio com uma edição especial da editora Global
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Ignacio de Loyola Brandão lançou 'Não verás país nenhum' em 1981 e tornou-se seu livro mais reconhecido (Foto: divulgação)
Foto: divulgação Ignacio de Loyola Brandão lançou 'Não verás país nenhum' em 1981 e tornou-se seu livro mais reconhecido

Os rios acabaram secando, fruto de um desmatamento desenfreado, o que resultou em uma incômoda poeira espessa espalhada em todos os cantos. Apesar de apocalíptico, o cenário se aproxima em diversos aspectos da realidade do planeta hoje, o que transformou o romance "Não Verás País Nenhum", no qual reina aquele ambiente, em um potente escrito visionário.

"Tem sido estudado como ficção científica, mas prefiro chamá-lo de ficção político-burocrática", comenta seu autor, Ignácio de Loyola Brandão. "Há anos, quando me pediam para autografar, eu escrevia invariavelmente: 'tomara que tal futuro jamais aconteça'. Mas, certa vez, uma mulher me disse: 'mas, meu caro senhor, ele já está acontecendo, olhe em volta'".

"Não Verás País Nenhum" completou 40 anos de lançamento em 2021, e a homenagem veio com uma edição especial da editora Global: além do texto original, o volume traz um apêndice de 32 páginas coloridas, nas quais Loyola apresenta o que chamou "Diário de Trabalho". Nele, estão registrados a evolução dos textos, as descobertas, as buscas de palavras e expressões, e o questionamento do significado das cenas e o surgimento dos personagens. Registra também algumas capas publicadas no Brasil e no exterior.

Isso porque o romance passou por um fervilhante processo criativo. Loyola trabalhava na Editora Abril, em 1972, quando rascunhou um conto chamado "O Homem do Furo na Mão". A inspiração veio das conversas com colegas do trabalho, especialmente as que tratavam da ditadura militar que vigorava na época e suas consequências como censura, prisões, mortes. "As pessoas 'diferentes' incomodavam os 'normais'", comenta Loyola, que escreveu o conto, mas o manteve na gaveta.

Com o tempo, ele passou a guardar recortes de notícias sobre devastação, poluição, enchentes, inundações, doenças estranhas causadas pelo sol. "Então, comecei a reescrever o conto que tinha oito ou dez páginas. Ele cresceu, cheguei a 50, 100, 200 páginas", conta. "Seria um romance, a ideia pipocou meses dentro de mim: um Brasil sem árvores - o Amazonas, um deserto. O principal estava ali, delineei o País, o sistema, a natureza morta, os efeitos, a corrupção e, quando a coisa ferveu, me vi, depois de três anos, com o romance pronto".

O fio condutor do romance é a trajetória de um professor de História que, nas primeiras décadas do século 21, é aposentado como forma de punição pela direção da universidade porque insistia em publicar os fatos reais, enquanto os governantes reescreviam ao seu interesse.

Para criar o título, o autor se inspirou em um verso de Olavo Bilac, do poema "A Pátria", de 1904: "Criança! Não verá país nenhum como este! / Imita na grandeza a terra em que nasceste". "Loyola releu o poema, tomou fôlego e trouxe o abismo para dentro de casa", observa a historiadora Heloisa M. Starling, em texto publicado no livro. "Foi cirúrgico. Cortou o verso de Bilac no ponto exato, inverteu bruscamente os principais componentes da nossa projeção utópica de país e revelou que alguma coisa deu muito errado no Brasil".

Loyola relembra que chegou a vacilar em relação ao tom do texto. "A certa altura, lá pela lauda 300, reli tudo e me sufoquei. Quem ia ler esse brutamontes? Imediatamente passei um fio da navalha, porque sabia que se usasse a sátira, o humor, o absurdo total o leitor respiraria, e assim foi. Levei meses reescrevendo, cheguei mesmo a cortar vários segmentos", relembra ele.

A fama de utópico, que colou no romance ao longo dos anos, nunca foi bem digerida pelo próprio autor. "Não antevi nada, imaginei tudo, a realidade me copiou e continua a copiar. O sucesso do livro hoje é essa estranheza. O horror de ele ser possível", comenta Loyola. "Então, os leitores percebem que está tudo à nossa volta. O livro se passa no futuro e os personagens lembram o passado, e o passado é hoje".

Loyola é autor também de outro clássico da literatura, "Zero" (1975), que nasceu do sufoco sob a pressão da ditadura e sua censura, violência, torturas, prisões e guerrilhas. "Veja que usei o mesmo processo para Zero, mas ao contrário", conta. (AE)

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