Os últimos meses nos Estados Unidos foram marcados por uma onda conservadora que recorreu a um novo alvo: os livros. A pedido de pais e grupos da organização civil, algumas escolas estadunidenses proibiram a circulação de obras consideradas "impróprias" aos adolescentes. São, em sua grande maioria, títulos que tratam sobre raça e a comunidade LGBTQIA . "O Ódio que Você Semeia", de Angie Thomas, que conta a história de uma adolescente negra que presencia o assassinato de seu melhor amigo por um policial branco, foi um dos objetos de proibição.
Essas instituições de ensino também censuraram outros, como "A Revolução dos Bichos", de George Orwell; "Heather Has Two Mommies" ("Heather Tem Duas Mães", em tradução livre para o português), de Lesléa Newman; "O Conto da Aia", de Margaret Atwood; e "O Sol é Para Todos", de Harper Lee. O caso mais recente foi a HQ "Maus", que aborda as consequências do holocausto e foi proibida em colégios norte-americanos. Mas isso não durou muito, porque algumas semanas depois, a história em quadrinhos virou um sucesso de vendas.
E, em meio ao conservadorismo, coube aos adolescentes resistirem. Um grupo de jovens entre 13 e 16 anos, de uma pequena cidade da Pensilvânia, criou um clube do livro chamado "Kutztown's Banned Book Club" por um motivo: eles queriam ler tudo aquilo que foi proibido. Sem apoio das bibliotecas escolares, reúnem-se em uma pequena livraria para discutir os textos da semana.
Em entrevista ao The Guardian, a estudante Joselyn Diffenbaugh, de apenas 14 anos, falou sobre a fundação desse movimento: "Eu amo ler, então é meio frustrante ver essas proibições, principalmente porque vários adultos estão proibindo isso, mas eles não estão perguntando aos adolescentes sobre nossa opinião acerca dos livros. É assustador pensar que todas essas pessoas que talvez precisem desses livros por um motivo, porque talvez elas estejam apenas aprendendo sobre si mesmas e precisam de algo para ler, não têm acesso aos livros", opina.
Jesse Hastings, outra integrante do grupo, ficou chocada ao perceber os motivos pelos quais as obras estavam sendo banidas. "Muitos dos livros foram banidos somente porque eles tinham representação preta ou representação LGBTQIA . Especialmente para crianças que são queer ou 'pessoas de cor' (no original, ela usa 'people of color', expressão criticada no Brasil), é muito importante ver representação nos livros. E, se você não tem acesso a isso, então pode ser muito prejudicial".
Um professor de inglês do Texas, Heathcliff Lopez, disse ao portal Openly que ainda havia esperanças: "A única fresta de esperança é quando eu digo aos estudantes que esse livro está na lista (de proibidos) ou o distrito não quer que eles leiam o livro, e, de repente, é o livro que não consigo manter na minha estante".
Conteúdo sempre disponível e acessos ilimitados. Assine O POVO+ clicando aqui
Histórico da censura no Brasil
Esse processo de exclusão de obras parece algo distante, que acontece em antigos governos autoritários, como na ditadura militar brasileira (1964 - 1985) ou no nazismo da Alemanha (1933 - 1945). Mas não é. O Brasil tem seu próprio histórico de proibição de livros desde antes da Proclamação da República em novembro de 1888, de acordo com o historiador Laurence Hallewell em "O livro no Brasil: Sua História" (1982). Na colônia, por exemplo, alguns pesquisadores citam que os títulos eram supervisionados e aprovados por autoridades da igreja católica.
Mas a situação se destaca em regimes baseados no autoritarismo. No período de Getúlio Vargas (1931 - 1945), houve a instauração do Instituto Nacional do Livro (INL) com o objetivo de produzir e disseminar obras que dialogassem com as ideologias da época, ao passo que o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) se responsabilizava pela censura. Por causa disso, os textos de Monteiro Lobato (1882 - 1948) foram proibidos. "As Aventuras de Tom Sawyer", de Mark Twain (1835 - 1910), foi considerada uma história "subversiva". A narrativa infantojuvenil do escritor estadunidense mostra as aventuras do órfão Tom Sawyer e de seu melhor amigo Huckleberry Finn, um garoto em situação de rua.
Em novembro de 1937, mais de 1,8 mil obras de literatura consideradas simpatizantes com o comunismo foram apreendidas e queimadas em praça pública em Salvador. Os títulos, de acordo com Jorge Amado no livro "Vida de Luís Carlos Prestes", eram: "Capitães de Areia", "Mar Morto", "Cacau", "O País do Carnaval", "Doidinho", "Pureza", "Banguê", "Moleque Ricardo", "Menino de Engenho", "Educação pela Democracia", "Ídolos Tombados", "Ideias, Homens e Fatos", "Dr. Geraldo", "O Nacional-socialismo Germânico" e "Miséria".
Entretanto, o processo de repreender produções literárias não se restringiu ao governo Vargas. Aconteceu também durante a ditadura militar, entre as décadas de 1960 e 1980. No Ato Institucional de Nº5 (AI-5) mais de 200 livros foram repreendidos, segundo Zuenir Ventura em "1968: O Ano que Não Terminou". De acordo com o professor universitário e escritor de "Nos Bastidores da Censura", Deonísio da Silva, aproximadamente 400 títulos foram repreendidos durante os mais de 20 anos de regime ditatorial. Em sua perspectiva, os livros podiam ser proibidos por motivos distintos, como a reputação do autor ou até mesmo a cor vermelha da capa, mesmo que não fizesse relação direta com o comunismo.
Censura nos dias atuais
Quase quatro décadas depois do fim da ditadura, tentativas de proibição continuam a acontecer. Um dos casos mais simbólicos ocorreu em 2019, quando o então prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, tentou impedir a circulação de livros que abordavam a identidade de gênero e outros assuntos relacionados à comunidade LGBTQIA na Bienal do Livro. O principal alvo da censura foi o romance gráfico "A Cruzada das Crianças", da Marvel Comics, que destaca um beijo entre dois homens.
No ano seguinte, o governo de Rondônia havia orientado as escolas públicas a recolherem livros considerados "inadequados às crianças e adolescentes". Entre os escritores, estavam grandes nomes da literatura, como Rubem Alves, Mário de Andrade, Machado de Assis, Euclides da Cunha e Franz Kafka. O pedido foi ordem de Marcos Rocha, ex-coronel da PM e filiado ao PSL. A situação não chegou a acontecer, porque as informações se tornaram de conhecimento público.
Já em 2021, a Fundação Palmares criou o "acervo da vergonha" depois de tentar retirar centenas de obras de seu acervo. O motivo da retirada, segundo Sérgio Camargo, presidente da entidade, é que são obras "marxistas e bandidólatras". O ato foi impedido judicialmente. Alguns dos autores que entraram para o "index de Camargo" foram Aldo Rabelo, Antonio Gramsci e Marilena Chauí.
Podcast Vida&Arte
O podcast Vida&Arte é destinado a falar sobre temas de cultura. O conteúdo está disponível nas plataformas Spotify, Deezer, iTunes, Google Podcasts e Spreaker. Confira o podcast clicando aqui