José Luís Peixoto construiu o seu romance como Dédalo construiu o labirinto na ilha de Creta. Há um mistério em suas profundezas, que só será revelado conforme o leitor interligue as pistas com demasiada atenção.
Aos 47, o romancista português conserva traços de infante e é dono de uma escrita vigorosa, tendo, há exatas duas décadas, conquistado o Prêmio Saramago por "Nenhum Olhar", seu livro de estreia. José Saramago, sua referência, é um assunto inesgotável, que orbita a formação de Peixoto desde quando foi agraciado pelo autor de "Memorial do Convento" com votos de admiração: "Uma das revelações mais surpreendentes da literatura portuguesa. É um homem que sabe escrever e que vai ser o continuador dos grandes escritores", disse Saramago a seu respeito.
"Caleidoscópico", o romance "Autobiografia" acompanha as idiossincrasias e angústias do jovem escritor José, ainda inexperiente, a receber de supetão uma tarefa hercúlea: escrever a biografia de José Saramago. O editor lhe pede duzentas páginas, mas, em dado momento, o próprio José questiona: "Existirá um Saramago verdadeiro? Quantos Saramagos existem?".
- Uma coisa é a imagem mítica do escritor, outra é a pessoa que aquele corpo habita. No livro, quando José está às voltas com a biografia de Saramago, ele se pergunta: "Quantos Saramagos existem?". Como você responderia a essa pergunta?
José Luís Peixoto: As possibilidades de Saramago são infinitas. Essa é uma lição deixada por outro grande autor português, Fernando Pessoa, que nos fez ver que existem incontáveis indivíduos em cada indivíduo. Neste romance, Saramago surge como personagem, que é a forma como cada um de nós percebe a pessoa que ele foi. Na vida, construímos versões uns dos outros, com base na informação que temos e da forma como entendemos a natureza humana. Acresce a isso o fato de Saramago ser narrador, a voz de todos aqueles livros, e autor que teve uma vida cheia, que se exprimiu em relação aos mais diversos assuntos, etc. Essa complexidade identitária é como um espelho a refletir em muitas direções.
- Vários escritores, como o protagonista, enfrentam o desafio de escrever o segundo romance. Isto é, fica mais difícil escrever conforme o tempo passa?
José Luís Peixoto: A escrita de um projeto literário pressupõe a tentativa de superação. Quando se escreve um primeiro romance, o principal desafio é terminá-lo. Quando se escreve um segundo romance, é necessário ir mais além. Repetir o que já mostramos a nós próprios que sabemos fazer é um exercício desinteressante. Assim, é importante que se tente fazer aquilo que, de início, não se tem a certeza de saber fazer. Dessa luta conosco próprios, nasce a literatura que vale a pena. Ao mesmo tempo, num segundo romance, há também que contar com a expectativa dos outros. Esse é um fantasma com que se tem de lidar, não vale a pena fingir que não existe. Por esses e outros motivos, existe o estereótipo do segundo romance como uma prova difícil.
- Pode-se dizer que um José (você) escreve sobre outro que escreve sobre outro José (Saramago). Quanto de Saramago há dentro de você?
José Luís Peixoto: Apesar de o título "Autobiografia" ser irônico, uma vez que não se trata realmente de uma autobiografia, não deixa de ter um grande peso e de apontar para a ideia de autorreflexão. Avaliamo-nos por meio dos outros e, em grande medida, avaliamos os outros a partir do que achamos sobre nós próprios. Este exercício é estrutural na natureza da literatura. Em grande medida, escrever sobre o outro, querer conhecê-lo, é procurá-lo em nós. Neste caso específico, não me foi difícil encontrar Saramago em mim. Há muitos elementos da sua história com que me identifico.
- Como foi a escolha para as epígrafes do livro? Elas me pareceram sinais luminosos entre os capítulos, como foi conversar com a obra do Saramago em "Autobiografia"?
José Luís Peixoto: Utilizei essas epígrafes quase como um sistema de apontar certos temas. Ao mesmo tempo, achei interessante ter uma presença da própria voz de Saramago. Há uma dimensão deste romance que se dirige a quem já tenha um bom conhecimento da obra de Saramago. A forma como algumas personagens destas páginas se relacionam com outras dos seus livros, assim como alguns episódios comuns, propõem essa possibilidade. Ainda assim, este não é um elemento imprescindível à compreensão da leitura.
- A fragilidade é uma realidade que as personagens enfrentam no livro, mas também é o elo entre elas. Quais são as fragilidades de um escritor a seu ver?
José Luís Peixoto: As fragilidades de um escritor podem ser de muitas ordens. Este romance detém-se sobretudo nas fragilidades que nascem da luta interior com a sua falta de confiança, com os seus medos. Na verdade, o que eu acredito de fato é que, numa grande medida, os desafios que se colocam a um escritor não são muito diferentes daqueles que se colocam a qualquer outra pessoa. A fragilidade é um dos pilares da natureza humana.
- Como tem sido o período de isolamento por conta da covid-19, o quão impactante foi a pandemia para a sua literatura?
José Luís Peixoto: Em março de 2020, estava dedicado a um romance. Quando o mundo parou, deixei de ter condições para esse trabalho e resolvi fazer uma interrupção. Então, pouco depois, surgiu um poema, outro a seguir e, dessa forma, no espaço de alguns meses, escrevi um livro de poesia que parte do próprio tema do confinamento para chegar a outros questionamentos. Esse livro chama-se Regresso a Casa e foi publicado ainda em 2020, inclusive no Brasil. Depois, já um pouco mais acostumado à situação que temos vindo a viver, retomei a escrita do romance e, de um modo bastante intenso, dediquei-me a terminá-lo. Foi publicado no ano passado. Para mim, o isolamento provocado pela pandemia acabou por ser muito produtivo. O grande desafio foi uma certa claustrofobia. Ainda assim, muitas vezes, a escrita funcionou como antídoto, pois permitiu alguma evasão mental.
- No ano do centenário de Saramago, qual é a lembrança mais vívida que você guarda do mestre?
José Luís Peixoto: As lembranças mais fortes são os encontros pessoais, algumas conversas, alguns momentos. Para mim, ainda antes dos meus 30 anos, ou logo depois, estar sob o olhar direto de Saramago, receber as palavras que me dirigia, era algo que me inibia, a que nunca me habituei completamente, mas que, ao mesmo tempo, sentia como um reconhecimento da sua consideração. Entre esses momentos, os melhores eram aqueles em que sentia o seu entusiasmo, quando os seus olhos brilhavam. Esse entusiasmo era diretamente proporcional à sua convicção, e a convicção de Saramago era muitíssimo potente e inspiradora.
- Você tem algum ritual cotidiano para escrever? E algum vício que combate com a escrita?
José Luís Peixoto: Tenho muitos hábitos, vícios e estratégias para lidar, todos eles no âmbito da escrita. Neste romance, a personagem José tem vários vícios que, felizmente, não tenho. Ainda assim, todos temos os nossos desafios. A esse nível, a escrita é parte de uma vivência constante. Não há uma resposta simples para a grande pergunta que é a vida.
- Poderia indicar um livro essencial para um jovem escritor que, assim como José com "Memorial do Convento", precisa devorar?
José Luís Peixoto: No âmbito da nossa língua, hoje, escolho "Livro do Desassossego", de Bernardo Soares/Fernando Pessoa. Penso que é um privilégio podermos ler páginas como essas na nossa língua materna. Ainda assim, talvez amanhã, perguntado, eu escolhesse outro livro. Os bons leitores não leem apenas obras imprescindíveis. Para reconhecer os livros bons, é muito importante ler alguns livros maus.
- Você poderia antecipar o tema de algum entre seus projetos literários? Há algum novo livro em produção?
José Luís Peixoto: Publiquei recentemente um romance chamado "Almoço de Domingo", que chegará ao Brasil ainda neste ano. Trata-se de um projeto que, em certa medida, continua algumas propostas do romance "Autobiografia". Também este novo romance trabalha elementos biográficos à luz da narrativa ficcional. Neste caso, no entanto, foi escrito a partir das conversas que tive ao longo de um ano com o homem a que se refere a personagem principal. Trata-se de alguém que nasceu em 1931, que esteve muito perto de momentos bastante marcantes da história contemporânea de Portugal. Para além disso, é um romance que toca diretamente o tema da família, que já esteve presente noutros livros meus. Estou muito curioso para ver como esse romance será recebido no Brasil. (Matheus Lopes Quirino/ Agência Estado)
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