"Não há tristeza que possa/ Suportar tanta alegria/ Quem não morreu da espanhola/ Quem dela pôde escapar/ Não dá mais tratos à bola/ Toca a rir, toca a brincar", entoava uma popular marchinha de Carnaval que percorreu as ruas do Rio de Janeiro em março de 1919. Os foliões tentavam, naquela época, encontrar diversão em meio à tragédia que haviam presenciado nos últimos meses. Entre outubro e novembro do ano anterior, a antiga capital federal tinha se tornado um "vasto hospital", como a Gazeta de Notícias noticiou, por causa da gripe espanhola. A doença matou aproximadamente 40 mil pessoas no Brasil, sendo 1/4 das vítimas do Rio de Janeiro. O País enfrentou um colapso no sistema de saúde com a falta de leitos e a abertura de hospitais de campanha. As funerárias também não conseguiam dar conta da quantidade de mortos, o que fez com que corpos fossem largados no meio da rua e homens de quaisquer profissões fossem obrigados pela polícia a sepultar cadáveres.
Só que, em poucos tempo, a população obteve uma imunidade em rebanho - e muitos pesquisadores até hoje tentam explicar exatamente o que aconteceu. Os que sobreviveram adiantaram as festas carnavalescas para comemorar que estavam vivos: a partir daquele momento, ninguém sabia se sobreviveria ao dia seguinte, então que pelo menos a vida fosse celebrada. O bloco Cordão do Bola Preta - um dos mais tradicionais da cidade carioca - desfilou pela primeira vez. Todos usavam roupas típicas espanholas e se valiam de "artimanhas" para conquistarem uns aos outros. Comerciantes, que estavam com suas atividades paradas por causa da epidemia, esgotaram seus estoques de lança-perfume e fantasias. Perucas também foram vendidas a quem estava careca, porque uma das sequelas da doença era a perda de cabelo.
"Quem não morreu sentiu-se no dever de celebrar a vida, brincando o Carnaval como nunca antes. A cidade saiu em peso para os corsos, ranchos e batalhas de confete. Os pierrôs e caveiras não se contentavam em pular — invadiam as casas e arrastavam os renitentes para a folia. Pela primeira vez, o samba superou os outros ritmos nas ruas", escreveu o jornalista e cronista Ruy Castro em texto divulgado no site da Academia Brasileira de Letras. Era, assim, uma tentativa de encontrar felicidade apesar da tragédia e do luto que acometeram a sociedade no período.
Muitos paralelos podem ser traçados com os dias atuais. Estamos em uma pandemia que vitimou mais de 640 mil pessoas no País. Depois de um longo período com o sistema de saúde colapsado, os brasileiros retornaram a uma certa normalidade por causa da vacinação. Mas muitas festividades continuam restritas para não haver o aumento do número de casos. Uma delas é o carnaval de rua, que foi proibido de acontecer pelo segundo ano consecutivo. E, enquanto os cidadãos não podem festejar a vida e a própria sobrevivência ao coronavírus, o Vida&Arte traça um histórico de momentos importantes do Carnaval para lembrar que, um dia, voltaremos a dançar nas avenidas. De 1919 a 2022, veja as resistências, as comemorações e as histórias que marcaram a tradição no Brasil.
Tenha acesso a todos os colunistas. Assine O POVO+ clicando aqui
Deixa Falar
Apesar da informação ser contestada por alguns pesquisadores e defendida por outros, a Deixa Falar é oficialmente conhecida como a primeira escola de samba do Brasil. O termo foi criado pelo próprio fundador, Ismael Silva, e explicado somente algumas décadas depois. Estudiosos como Felipe Ferreira, coordenador do Centro da Referência do Carnaval na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, defendem que "escola" foi um termo criado para as agremiações serem aceitas em uma sociedade que ainda marginalizava o samba. Fato é que o grupo não durou muito, porque suas atividades foram encerradas em 1933, após uma série de conflitos internos sobre os gastos administrativos.
Homem da Meia-Noite
Em 2 de fevereiro, data dedicada à Iemanjá, um dos primeiros bonecos gigantes andou pelas ruas de Olinda. A figura sorridente, associada ao candomblé por causa do dia em que estreou, surgiu de uma ideia de membros dissidentes do bloco Troça Carnavalesca Mista Cariri. Quando alguns trabalhadores se sentiram excluídos das decisões da antiga agremiação, eles decidiram criar um grupo novo: o Homem da Meia-Noite, que virou um patrimônio cultural de Pernambuco.
Primeiro desfile de escola de samba
O primeiro desfile oficial aconteceu no dia 7 de fevereiro, na Praça da Onze, no Rio de Janeiro. A noite contou com 19 escolas, que podiam apresentar três sambas. A grande vencedora do concurso foi a Estação Primeira de Mangueira, que fez perfomances de "Pudesse Meu Ideal", de Cartola e Carlos Cachaça, e "Sorri", de Lauro dos Santos. O segundo lugar foi um empate entre Para o Ano Sai Melhor e Vai Como Pode (atual Portela).
Bloco Prova de Fogo
O primeiro bloco criado em Fortaleza foi o "Prova de Fogo", responsável por inaugurar o carnaval popular na capital cearense. A agremiação também foi a precursora nas apresentações com músicas na cadência do samba, que utilizava os instrumentos de percussão e sopro. Os fundadores foram militares do 23º Batalhão de Caçadores e comerciários.
Maracatu Az de Ouro
Um dos pioneiros do maracatu no Ceará, o Az de Ouro foi fundado por iniciativa de Raimundo Alves Feitosa (também conhecido como Raimundo Boca Aberta). Em seu primeiro desfile, em 1937, os membros apresentaram ao carnaval de rua de Fortaleza a musicalidade e a cultura afrodescendente. O cortejo segue uma ordem definida e também possui roupas tradicionais.
Carnaval no governo Vargas
Durante o período do estado novo, o samba-enredo das escolas precisava versar sobre temáticas ufanistas, exaltando valores culturais e sociais do País. Além de ser uma imposição do Getúlio Vargas (1882 - 1954), também havia orientação da própria Associação das Escolas de Samba. As fantasias e as músicas tinham de refletir a visão do presidente.
Primeiro trio elétrico
Diferentemente das grandes estruturas dos trios elétricos que conhecemos atualmente, a tradição começou com alguns aparelhos de som em cima de um carro Ford 1929. Em 1950, os amigos Adolfo Antônio do Nascimento, mais conhecido como Dodô, e Osmar Alvares Macedo pintaram círculos coloridos no veículo para ilustrar confetes e colocaram duas placas escritas "Dupla Elétrica".
Desfile sobre Zumbi do Palmares
Tentando se distanciar das temáticas patrióticas, o Salgueiro já havia elaborado enredos que versavam sobre temáticas históricas do Brasil: os navios negreiros, por exemplo, foram o foco em 1957. Mas, em 1960, a escola contratou Fernando Pamplona, que viria a ser considerado um dos mais importantes nomes do carnaval brasileiro, e ele propôs abordar a história do Quilombo dos Palmares, em homenagem a Zumbi. Longe de um olhar idealizado, a agremiação se tornou uma das campeãs do ano.
Heróis da Liberdade
No período da ditadura militar (1964 - 1985) e, principalmente, no Ai-5, as escolas de samba sofreram pressões e censuras por causa das temáticas de seus enredos. Entretanto, o Império Serrano foi à avenida com o tema "Heróis da Liberdade", com o objetivo de homenagear as pessoas que lutaram pela liberdade no Brasil: dos indígenas na colônia aos negros durante a escravidão. Os versos criados por Silas de Oliveira, Mano Décio e Manoel Ferreira também demonstravam esse ideal libertário: "Alunos e professores/ Acompanhados de clarim/ Cantavam assim/ / Já raiou a liberdade/ A liberdade já raiou/ Essa brisa que a juventude afaga/ Esta chama que o ódio não apaga/ Pelo universo é a evolução/ Em sua legítima razão". Por causa disso, os compositores foram chamados a testemunhar no Departamento de Ordem Política e Social (Dops).
Maracatu Vozes da África
Um grupo de intelectuais e artistas, liderado pelo jornalista Paulo Tadeu Sampaio de Oliveira, queria celebrar a ancestralidade em Fortaleza. E, inspirados pelo Dia da Consciência Negra, os membros criaram o Vozes da África para tornar o maracatu em um espetáculo. O nome da agremiação vem do poema homônimo de Castro Alves (1847 - 1871), que trata das dores e das atrocidades vividas pelo negro durante a escravidão: "Hoje em meu sangue a América se nutre/ Condor que transformara-se em abutre,/ Ave da escravidão,/ Ela juntou-se às mais... irmã traidora/ Qual de José os vis irmãos outrora/ Venderam seu irmão".
Sambódromo da Marquês de Sapucaí
Na década de 1980, os desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro já tinham se tornado um dos grandes marcos do carnaval do Brasil. Porém, foi em 1984 que o evento ganhou um espaço para a realização dessas apresentações. No ano anterior, três pessoas se uniram para montar o ambiente: o político e então presidente Leonel Brizola (1922 - 2004), que aprovou o projeto de Oscar Niemeyer (1907 - 2012), e o antropólogo Darcy Ribeiro (1922 - 1997), responsável pelo nome "sambódromo" e por ser o mentor da obra. Em alguns meses de trabalho, a Marquês de Sapucaí foi inaugurada e iniciou o sistema de desfiles que consiste em duas noites, não somente em uma.
Sambódromo do Anhembi
Com importantes agremiações, como a Gaviões da Fiel, a Águia de Ouro e a Dragões da Real, São Paulo também tem sua própria tradição carnavalesca. E, até o início da década de 1990, os desfiles das escolas de samba da cidade paulista ocorriam na avenida Tiradentes. Mas, em 1991, o Sambódromo do Anhembi foi inaugurado. O projeto do arquiteto Oscar Niemeyer transformou o espaço no evento anual do Carnaval do estado.
Sem Carnaval
Após décadas - e até séculos - de tradição, o Brasil viveu seu primeiro ano sem festividades carnavalescas por causa da pandemia do coronavírus. O País está em seu segundo ano consecutivo sem festas públicas de rua, mas alguns estados e cidades permitiram eventos privados durante a época. Já as escolas de samba do Rio de Janeiro e de São Paulo devem desfilar em abril, de acordo com previsão dos governos estaduais.
Podcast Vida&Arte
O podcast Vida&Arte é destinado a falar sobre temas de cultura. O conteúdo está disponível nas plataformas Spotify, Deezer, iTunes, Google Podcasts e Spreaker. Confira o podcast clicando aqui