Logo O POVO+
Distopia no cinema: futuros entre realidade e ficção
Vida & Arte

Distopia no cinema: futuros entre realidade e ficção

Profissionais debatem como enredos distópicos podem funcionar como ferramentas de reflexão para problemáticas sociais
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
O cineasta Glauber Rocha se apropriou de uma cidade fictícia para discutir questões brasileiras  (Foto: Divulgação )
Foto: Divulgação O cineasta Glauber Rocha se apropriou de uma cidade fictícia para discutir questões brasileiras

Um vírus, até então desconhecido, faz com que a população mundial fique isolada. Sem prevenção e cura no início, a única medida para evitar o contágio é o distanciamento social e o uso de máscaras. Ao mesmo tempo em que milhões de vidas são ceifadas pelo agente infeccioso, desastres ambientais ameaçam o ecossistema e uma guerra surge em iminência. A descrição, apesar de ser baseada em fatos verídicos que vêm acontecendo há pouco mais de dois anos, poderia ser a sinopse de um lançamento cinematográfico. Se esta sucessão de acontecimentos fosse criada para as telonas, certamente se enquadraria como uma distopia.

Mas o que a palavra significa? Ela foi registrada pela primeira vez durante um discurso de John Stuar Mill, membro do parlamento do Reino Unido, em 1868. Ele buscava o termo adequado para descrever o oposto de 'utopia', expressão elaborada pelo filósofo Thomas More que simboliza um 'não-lugar' composto pela ideia de sociedades perfeitas. O distópico, então, age no sentido oposto. É o campo da reflexão no qual se pode criar uma série de hipóteses negativas a respeito do que ainda está por vir. Prontamente a proposta serviu como inspiração para escritores, ganhando destaque nas páginas impressas de obras como "Nós" (1924), de Yegeny Zamyayin, "Admirável Mundo Novo" (1932), de Aldous Huxley, e "1984" (1949), de George Owell. "A gente tem como base um futuro, que chamamos de distópico, onde a sociedade se encaminha para um lugar de autoritarismo. Nós temos várias subdivisões das distopias: as políticas, tecnológicas, pós-apocalípticas.. Geralmente todos os problemas de distopia são causados pelos seres humanos, mas tudo isso começa na literatura", explica o historiador e cineasta Elvio Franklin, responsável pelo site "Só Mais Uma Coisa" e os podcasts "Só Mais Um Plano Sequência" e "Falando Sobre Séries".

O conceito começou a ser mais explorado no cinema no início do século XX, tendo como um dos principais títulos o filme alemão "Metropolis" (1921), clássico da corrente expressionista, cujo enredo mostra uma cidade de 2026 comandada pela elite que controla a classe operária. O longa-metragem é considerado um dos pioneiros da ficção científica e explicita o teor crítico do gênero, visto que foi realizado entre a primeira e a segunda guerra mundial. "A distopia tem um potencial muito grande de trabalhar e discutir questões importantes que estão acontecendo na atualidade. Muitas vezes, elas tratam muito mais sobre o contexto que a obra está sendo produzida e falam do presente", elabora o podcaster.

De acordo com o curador e crítico de cinema Filippo Pitanga, todo movimento de transformação histórica é evidência no cinema. "Essa experiência coletiva faz com que a gente queira refletir culturalmente o que acontece socialmente conosco. São projeções evidentes, a tela é um desfecho. Ela espelha o que a gente projeta", afirma Filippo. O profissional cita como exemplo o trabalho do cineasta brasileiro Glauber Rocha com o filme "Terra em Transe" (1967), produzido em meio à Ditadura Militar, que discute "diretamente o Brasil, chamando de Eldorado, em uma situação hipotética". Para apresentar uma produção mais recente, Filippo e Elvio mencionam "Divino Amor", de Gabriel Mascaro (2019).

A estética antes atribuída majoritariamente à cena alternativa conquista cada vez mais espaço na cultura pop, em propostas que transitam entre a ficção, fantasia e o terror. Dois pontos são chaves nessa mudança: o alcance das plataformas de streaming e o impacto do contexto sócio-político. Filippo ressalta que o tempo dentro de casa foi uma maneira de descobrir novas possibilidades. "Todo universo contém outro universo. Dentro de casa, para lidar com o imponderável, a gente precisou vertiginosamente mergulhar em um microscópio para ver outros lados. Com a pandemia, os cinemas fecharam, se não é o streaming, ninguém vê nada. E a gente estava enlouquecendo, psicologicamente e fisicamente. Se não tem cultura, se não tem troca, as pessoas adoecem".

Já na atual conjuntura, entre pandemia, guerra e crise climática, o gênero passa de forte potência metafórica para uma conversa com o que é concreto. "A ficção sempre quis dialogar com as possibilidades dos nossos futuros e trazer à tona questões afloradas. As guerras, invasões ideológicas, conservadorismo, tudo isso sempre existiu. Agora, nós passamos a ver filmes distópicos que viraram quase documentários. É o diálogo com a extrema realidade, que está tão absurda que começou a se tornar razoável", opina o crítico.

Audiovisual em distopia

Violência

A violência exacerbada costuma ser um ponto retratado na estética distópica para representar tragédias. Geralmente, são conflitos armados, como situações de guerra, ou de crimes. Um caso é o sucesso de "Laranja Mecânica" (1971), filme de Stanley Kubrick.

Autoritarismo

Os sistemas de controle, seja pelo Estado ou por corporações, adentram os produtos audiovisuais como representação do domínio parcial ou total da população, como na adaptação de "Fahrenheit 451" (1966), de François Truffaut.

Tecnologia

Ferramentas tecnológicas estão entre as principais escolhas nos roteiros de distopias. Robôs e mecanismos de inteligência artificial também podem ter papel considerável no desenrolar das histórias, a exemplo da obra "Alphaville" (1965), do francês Jean-Luc Godard.

Podcast Vida&Arte

O podcast Vida&Arte é destinado a falar sobre temas de cultura. O conteúdo está disponível nas plataformas Spotify, Deezer, iTunes, Google Podcasts e Spreaker.

O que você achou desse conteúdo?