Andressa Meireles é jornalista, mãe, baiana de sotaque bonito. Muryell Damasceno é promotora de vendas e neta. Thayná Silveira é jurista e amiga. Como tantas outras mulheres, talvez gostem de rodas de samba, cerveja gelada, jogos de lençóis novos, promoções no trabalho, meses com feriados. Como tantas outras mulheres, sofreram violência doméstica. No Brasil, 17 milhões de mulheres foram vítimas de violência física, psicológica ou sexual no último ano, de acordo com pesquisa Instituto Datafolha. Neste 8 de março, Andressa, Muryell, Thayná, Camila, Lia, Natália, Eduarda, Bruna e tantas outras querem contar as próprias histórias.
Para exaltar o protagonismo feminino e ressignificar a situação de violência doméstica, a segunda edição do projeto "O que não nos disseram" foi lançada no Shopping Iguatemi ontem, 7, e segue em cartaz até 21 de março. Idealizada por Andressa Meireles, a segunda edição da exposição interativa reúne 16 fotografias gigantes feitas por 13 fotógrafas — entre elas, Camila de Almeida, Delfina Rocha, Lia de Paula e Natália Marques. A mostra apresenta ainda imagens táteis, audiodescrição e tradução em Libras.
"O meu primeiro desejo foi conversar com mulheres. Eu havia sido vítima de violência e eu precisava conhecer outras mulheres, conversar com outras mulheres que tinham passado por situações parecidas com as que eu havia vivido para tentar entender o que eu havia vivido", resgata Andressa. "Violência contra a mulher não é só a violência física. Conversando com outras mulheres, eu percebi que a gente precisa falar de muitas coisas que geralmente a gente não fala — por isso o projeto se chama 'O que não nos disseram', para a gente começar a conversar sobre violência de uma maneira mais profunda e mais complexa".
Andressa destaca que uma das missões do projeto é reconhecer a pluralidade de mulheres e violências para romper com o silenciamento e a invisibilização. "O que não nos disseram é que a gente precisa ouvir mulheres o tempo todo, mulheres plurais e diversas, e ouvi-las de maneira aberta. Não é o ouvir para que a gente encontre resposta, é ouvir para a gente questionar junto. Eu não posso afirmar por todas as mulheres o que não nos dizem a respeito de violência, isso também seria violento, mas eu posso afirmar por mim que o que não me disseram é que a violência é muito mais complexa do que se imagina. Não me disseram o quanto a violência psicológica destrói, paralisa, nos faz perder a dignidade, nos faz esquecer quem somos — eu, pelo menos, esqueci quem eu era durante muito tempo. Não me disseram também que eu ia encontrar força em outras mulheres, que eu ia poder me ver mulher ao conversar com outras mulheres que também foram vítimas de violência porque eu não as via como vítimas, eu as via como mulheres. Eu via mulheres na minha frente e isso me deu a chance de me ver mulher de novo", compartilha a jornalista.
Muryell Damasceno é uma das fotografadas do projeto. "Participei por uma identificação com a causa: eu sofri violência doméstica, passei por todo o processo, mas a minha vida seguiu e eu hoje não vivo mais com violência doméstica. Estou aqui para mostrar para outras pessoas que talvez não saibam tudo que a violência doméstica incorpora. Muitas olham para a violência doméstica no final das contas, quando existe normalmente uma agressão física, e esse projeto veio para desmistificar algumas coisas e para trazer informação. A violência doméstica é pouco falada e muito marginalizada. Você não quer se identificar com essa coisa de ser vítima, as pessoas ficam olhando para você de um jeito estranho depois que elas sabem que você sofreu violência doméstica… Eu acho que muitas mulheres sofrem violência doméstica e nem sabem que sofrem, acham que é só machismo ou coisas culturais e não é só isso. A gente precisa mudar a forma de ver a violência doméstica para a pessoa poder entender e deixar de fazer parte desse ciclo", defende.
"Quanto maior a rede de apoio, mais facilidade você terá para romper e mudar essa realidade. Muitas vezes, a violência doméstica está num contexto onde você constituiu família, tem dependência financeira, dependência emocional… É um processo extremamente doloroso. Eu rompi o ciclo da violência doméstica e sou um exemplo vivo para todo mundo que está passando por esse problema e precisa sair desse ciclo", continua Muryell.
A rede de mulheres foi fundamental para Thayná Silveira também. "Desde que eu rompi meu silêncio, muitas mulheres romperam seus silêncios também. Acho que durante muito tempo a gente guarda essa história por vergonha, por medo, por achar que foi só com a gente que aconteceu. Hoje sei que esse silêncio, essa vergonha e esse medo não devem ser das vítimas e sim dos agressores", pontua a fotografada. "Ser fotografada, à priori, me causou desconforto porque me enxergar também pela lente de alguém é difícil, mas depois consegui olhar para mim dentro de um abraço e isso foi potente", adiciona.
"Descobrir que há uma rede de mulheres que nos acolhe é primordial. Há dores que ninguém alcança, mas que um colo comporta. O acompanhamento terapêutico, as rodas de conversas, a energia das mulheres que também se reconhecem nessa dor é transformador nessa caminhada. As potências e possibilidades são muito particulares. Romper o silêncio ou não, não é sobre coragem. É sobre como você decide lidar com o que lhe ocorreu. Eu demorei 20 anos. Resolvi dedicar a minha carreira profissional toda para o acolhimento de mulheres vítimas de violência. Essa foi a forma que encontrei de me manter de pé apesar de. Porque é mais do que ser uma sobrevivente. É sobre viver", enfatiza Thayná.
A fotógrafa Delfina Rocha conheceu o projeto por meio da também fotógrafa Lia de Paula. Hoje, ela assina a foto de capa do Vida&Arte. "A gente está levando informação através da arte sobre essas violências que, às vezes, as pessoas nem sabem que estão sofrendo. Eu fotografei três mulheres… Escolhemos elementos ou situações que as mulheres eram proibidas de fazer enquanto se relacionavam com esses esses maridos e namorados que abusavam psicologicamente, fisicamente ou patrimonialmente delas. Foi um trabalho muito rico, antes da sessão a gente conversou bastante para criar uma certa intimidade entre a fotógrafa e a mulher a ser fotografada. A gente sempre conheceu a trajetória das mulheres que a gente ia fotografar porque é importante para passar isso na fotografia com mais intensidade e potência. Foi um trabalho de um resultado super incrível", relembra.
"Acredito que a função da arte é exatamente essa, fazer com que as pessoas sejam atravessadas também por questões que apresentamos na obra, uma conexão através de sensações , de memórias, de conflitos; perceber o que essa obra tem a ver com a vida pessoal de cada um e com o nosso entorno. Quando Andressa idealizou esse projeto foi com esse intuito, que a arte fosse um instrumento de informação , de conscientização sobre violências contra a mulher. Através de minhas fotos, quero também mostrar toda a beleza e força de cada mulher que se ergueu e conquistou novamente sua dignidade", finaliza.
A Central de Atendimento à Mulher recebe denúncias de casos de violência no número 180.
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Exposição "O que não nos disseram"
Onde: Shopping Iguatemi Fortaleza (Av. Washington Soares, 85, Edson Queiroz)
Quando: em cartaz até 21 de março
Gratuito
Podcast Vida&Arte
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