“A azeitona do pastel possui caroço”. Entre buzinas agudas no trânsito caótico, farmácias multiplicadas velozmente e estacionamentos que crescem denunciando a nostálgica decadência das lojas fechadas — retratos de uma Fortaleza apartada em shoppings —, parece até que o tempo passa mais devagar ante o cartaz na parede da pastelaria Leão do Sul da Praça do Ferreira. O pastel de carne moída com azeitona acompanhado de caldo de cana, os óculos vez ou outra roubados da estátua da escritora Rachel de Queiroz na Praça dos Leões, o boêmio bode Iôio no Museu do Ceará, o som dos tantãs todos os domingos no samba do Raimundo do Queijo: tudo isso é tradição do Centro da Cidade. Como bem cantou o cearense Belchior, no entanto, "o novo sempre vem".
O Centro é memória que se desdobra dia após dia, mas também é flerte com o presente. Num dia perdido na semana, sob o calor do meio-dia, a repórter fotográfica do O POVO Thais Mesquita e eu caminhamos pelo bairro em busca do novo. Na Cidade da Criança, reinaugurada em 2021 após 18 meses de reforma, bancos embaixo de árvores frondosas convidam ao descanso. Lá conhecemos uma mãe em busca do filho perdido e uma mulher descobrindo a vida após a decisão de se separar do marido, unidas por uma lata de cerveja comprada no supermercado mais próximo. "Ficou tudo tão bonito, né? Sentei aqui para olhar a água e meditar", me confidenciou uma delas. Construído há cerca de 120 anos, o equipamento recebeu pintura, novo mobiliário urbano e espaços lúdicos infantis.
Atravessamos as ruas General Bezerril e Pedro Borges e nos quedamos na Praça do Ferreira. Dessa vez, os deliciosos cheiros da Cafeteria Santa Clara Reserva da Família no Cineteatro São Luiz nos atraíram. O charmoso café inaugurado em 2019 oferece minutos de pausa e acompanha a programação do equipamento. Poucos metros adiante, o Bar Cultural Lions renova a vida noturna da Praça dos Leões de quinta-feira a domingo — samba, pop, forró, variados ritmos enchem o Centro de suor e cerveja.
No Museu da Indústria, localizado na rua Dr. João Moreira, o Aconchego Bistrô Cearense nos recebeu nos recebeu com sertão e mar no prato. Restaurante da Chef Marina Araújo com a sócia Karol Teodoro, o bistrô foi inaugurado em janeiro deste ano e guarda um pedacinho do Ceará nos ingredientes, na decoração e na proposta. Ao final do dia, a redescoberta do Centro me lembrou o poema "Mameluco", do escritor carioca Chacal: "Colar o ouvido no asfalto/ tomar o pulso da cidade/ e dançar".
Um aconchego no Centro da Cidade
O POVO: o Aconchego Bistrô Cearense se localiza num ponto fundamental do Centro de Fortaleza: o Museu da Indústria, na frente do Passeio Público. Para você, qual é a importância dessa relação do restaurante com o bairro?
Marina Araújo: Para mim, é de uma importância imensa. É um sentido de pertencimento que nos aflora, é um orgulho de ser cearense e estar ocupando esse espaço, ocupando a Cidade e ocupando o Centro — que tem esse estigma da marginalização, da palavra marginal mesmo. O Centro precisa ser revitalizado para voltar a ser o centro comercial, o centro dos negócios, o centro das nossas operações. O nosso Centro é o que a gente tem de mais histórico na nossa Cidade, que é uma Cidade que tem pouca memória arquitetônica e urbanística. Esse movimento de ocupar o Centro pode ser bom para a gente se apaixonar novamente pelo bairro e preservar o que a gente ainda tem de casarão, de rota histórica… Quando eu fui convidada para ocupar esse espaço com o Aconchego, eu quase não acreditei porque é uma honra imensa. A relação de restaurante/espaço geográfico também quebra esse paradigma de que um bistrô não pode estar no Centro da cidade. Um bistrô pode estar em qualquer lugar, habitando inúmeras dinâmicas. Ocupar esse espaço enquanto bistrô é muito libertador também.
OP: Qual é a identidade do cardápio do Aconchego? Quais ingredientes e preparos guiam a sua cozinha?
Marina: Eu digo que o Aconchego é um restaurante tipicamente cearense: ele fala cearense, então as referências são todas cearenses e muito voltadas para o que a gente conhece de gastronomia, de culinária, com o meu toque, com os meus temperos, com as minhas formas de fazer e de apresentar também. Isso traz uma nova roupagem para o restaurante e põe a minha impressão digital nos pratos que a gente conhece tão bem.
Cafeteria do Cineteatro São Luiz
A charmosa Cafeteria Santa Clara Reserva da Família no Cineteatro São Luiz é um reduto silencioso em meio à efervescência da Praça do Ferreira. Após uma manhã no Centro, o casal de publicitários Ítalo Oliveira e Maria Clara conheceu o café e aprovou cardápio e ambiente. "Gostamos bastante do café. Passamos por aqui, achamos bonitos e decidimos conhecer", pontua Maria Clara. "Sempre comemos pastel da Leão do Sul, tradicional, mas foi uma boa surpresa conhecer outro local", destaca Ítalo.
O Centro foi o bairro escolhido pelo casal para apresentar Fortaleza a uma prima de Maria Clara. "Nós visitamos o Cineteatro, o Theatro José de Alencar, o Passeio Público, o Museu da Indústria. Eu amo vir ao Centro", compartilha Maria Clara. "E é ótimo turistar na própria cidade", completa Ítalo.
Horário de funcionamento: de segunda a sábado, das 7h às 19h; aos domingos, acompanhando a programação do Cineteatro
Feirinha com um pouco de tudo
Onde comprar pano de prato? Ou mesmo uma doleira? O Centro é o lugar ideal para encontrar tudo e mais um pouco: lojas de roupa, malas, bijuterias, festa, brinquedos; óticas; relógios; luminárias; papelarias… A lista não tem fim. Na Praça do Ferreira, a feirinha de produtos oferece opções diversas aos consumidores. Proprietários da marca Maria José Artes Manuais (@mariajoseartesmanuais no Instagram), os artesãos Maria Antônia e José Valdecy produzem bolsas para Kindle, notebook, carregador de celular e até Vade Mecum e as queridinhas dos clientes — as doleiras chamadas "discretinhas", coloridas e cheias de estampas.
"É a primeira vez que saímos para expor em uma feira desde o começo da pandemia e estamos muito felizes", compartilha Dona Maria Antônia. "Isso aqui tudo é a gente que faz. Nossa filha, Jeanne Gomes, é nosso ponto de apoio ", orgulha-se Seu José.
Bar Cultural Lions
Nos idos de 1999, o casal paraibano Eufrásio da Silva e Fátima Silva encarregou-se de uma missão que também é vocação e festa: transformar o ponto recém-alugado na Praça General Tibúrcio — a Praça dos Leões — em referência. Proprietários do restaurante Lions Self-Service há mais de duas décadas, Seu Eufrásio e Dona Fátima testemunham a Fortaleza que se embrenha nas ruas do Centro. Há cerca de oito anos, o Bar Cultural Lions (@barculturallions no Instagram) iniciou o movimento de ocupar a praça com música, dança, celebração e arte.
Horário de funcionamento: quinta a sábado, das 19h às 2h; domingo das 16h às 23h
Podcast Vida&Arte
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