"E então... não mais". Às 21h de 30 de dezembro de 2003, à mesa onde a escritora Joan Didion e o roteirista norte-americano John Gregory Dunne se sentaram para jantar, a morte ocupou uma cadeira. Lareira e velas acesas, Joan ocupava-se de misturar a salada quando o silêncio caiu feito inesperada bruma sobre a sala. John estava falando e, de repente, se calou. Ao levantar os olhos, a autora viu o marido com a mão esquerda erguida e curvado para a frente, imóvel. Infarto agudo do miocárdio.
Nove meses e cinco dias depois, Joan começou a escrever o livro "O ano do pensamento mágico" (2005), uma "tentativa de entender o período que se seguiu, as semanas e depois meses que levaram com eles qualquer ideia fixa que eu pudesse ter sobre a morte, sobre a doença, sobre probabilidade e sorte, sobre boa e má fortuna, sobre casamento, filhos e memória, sobre a dor, sobre a maneira como as pessoas lidam ou não com o fato de que a vida acaba, sobre como a sanidade é frágil, sobre a própria vida".
Até fevereiro de 2022, mais de 5,95 milhões de pessoas morreram contaminadas pelo novo coronavírus. Mães de filhos órfãos, esposas viúvas, irmãos que sentem a dor da perda como um membro fantasma amputado do corpo, colegas de trabalho que encaram o escritório vazio, pessoas sem ninguém neste mundo de meu Deus, mas repletas de história. Entre a boca da noite e a madrugada a população aumenta e diminui, num jogo eterno sabe-se lá criado por quem — todo dia se nasce, todo dia se morre. Morte morrida ou morte matada, o fim da vida é assombro no ocidente. "Tão jovem!", lamentam uns. "Cumpriu sua missão", resignam-se outros. "Meus pêsames". As palavras caem no abismo.
"O luto é uma forma cruel de aprendizado", inicia a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie na obra "Notas sobre o luto" (2021). "Você aprende como ele pode ser pouco suave, raivoso. Aprende como os pêsames podem soar rasos. Aprende quanto do luto tem a ver com palavras, com a derrota das palavras e com a busca das palavras". Escrito após a morte do pai da autora de "Americanah" (2014) e "Hibisco roxo" (2011) em junho de 2020, durante a pandemia de Covid-19 que mantinha distante a família Adichie, a obra é um poderoso e devastador relato sobre a única experiência universal: o luto.
Um dos autores de maior destaque da literatura portuguesa contemporânea, José Luís Peixoto perdeu o pai no fim da adolescência. Queria ver o progenitor velho, velhinho no quintal, a regar as árvore e as flores… "Sinto tanta falta das tuas palavras. Orienta-te, rapaz. Sim. Eu oriento-me, pai. E fico. Estou", grafou em "Morreste-me" (2000). "O entardecer, em vagas de luz, espraia-se na terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho alvura sobre mim. E oiço o eco da tua voz, da tua voz que nunca mais poderei ouvir. A tua voz calada para sempre. E, como se adormecesses, vejo-te fechar as pálpebras sobre os olhos que nunca mais abrirás. Os teus olhos fechados para sempre. E, de uma vez, deixas de respirar. Para sempre. Para nunca mais. Pai. Tudo o que te sobreviveu me agride. Pai. Nunca esquecerei".
O luto e a literatura bordam-se em delicada filigrana, cortantes como punhal de prata. Na virada do ano de 1991 para 1992, enquanto viajava para divulgar o livro recém-publicado "O Plano Infinito", a escritora chilena Isabel Allende recebeu uma notícia esmagadora: sua filha Paula, então com 28 anos, foi internada por causa de uma crise neurológica. Portadora de porfiria, doença que herdou do pai, a jovem piorou abruptamente e entrou em coma. Por semanas e meses, a mãe definhou nos corredores do sexto andar do hospital à caça do especialista para indagar novos pormenores, aguardando a recuperação da filha.
Carmen Balcells, agente literária de Allende, entregou um bloco de notas à escritora certa feita. "Toma, escreve e desabafa, se não o fizeres morres de angústia, minha pobrezinha". A princípio, a autora recusou. "Escreva uma carta à Paula...", insistiu a agente. "Quando acordares teremos meses, anos talvez para colar os pedaços quebrados do teu passado, ou melhor ainda, poderemos inventar as tuas recordações à medida das tuas fantasias", prometeu a mãe em palavras rabiscadas no leito hospitalar. Paula não acordou. O luto, ensaiado na angústia de amarrar uma letra à outra em busca de sentido, perdeu-se na inexistência da palavra: como se nomeia uma mãe que perde um filho?
"É impensável viver a dor sem a arte", ressalta Teresa Vera de Sousa Gouvêa, graduada em Psicologia pela Universidade de Taubaté e especialista em Luto pelo 4 Estações Instituto de Psicologia. "Nós temos pouco pouco espaço para o luto, tudo que é triste e é pesar tem muita interdição social. Quando eu não falo disso, eu penso que evito, mas eu não evito. Quando eu me aproximo desse diálogo com a morte não quer dizer que eu não vou ficar triste, mas eu consigo ter uma conversa melhor com a chegada dessa morte… Quando nos aproximamos do tema, parecemos receber melhor a morte, já que ela vai chegar. Há uma sensação de quando morre alguém jovem que não cumpriu tudo que havia para cumprir, a morte é injusta — mas a morte é democrática, ela não poupa ninguém. Precisamos ampliar esse diálogo com a morte", continua.
Criadora do projeto Laços&Lutos, Teresa elabora a morte também a partir da palavra. Nascida na zona rural de São Paulo, a psicóloga convive com a morte desde a infância, nos relatos de assombração compartilhados pelo avô em noites escuras. "Em São Luiz do Paraitinga, quando alguém morria, era anunciado no alto falante. Eu tinha intimidade mesmo com a morte", relembra. O Laços&Lutos, entretanto, nasceu após a morte da sobrinha de Teresa, Anne. "Sem tempo para um café ou um abraço, sem tempo para viver o futuro que ela estava combinando com a vida. Criei o projeto porque eu tinha necessidade de acolher melhor a saudade do outro", adiciona.
"A arte é transformadora. Ela fala conosco, conversa conosco — é por isso que não consigo pensar a dor sem a arte", complementa Teresa. O psicanalista francês Jacques Lacan, influenciado pela arte de um modo geral — comentando de Hamlet a Marguerite Duras em seus escritos —, afirmou que o psicanalista há "de se lembrar, com Freud, que em sua matéria o artista sempre o precede e, portanto, ele não tem que bancar o psicólogo quando o artista lhe desbrava o caminho". Expressão que ganha o corpo, a arte constrói pontes para o indizível.
Em tempos de Covid-19, um luto coletivo se esgueira e toma o corpo, enche os olhos d'água, apavora. "A pandemia trouxe a possibilidade da morte para a vida da gente porque ela tomou o nosso mundo presumido — a padaria, o supermercado, o tempo… Essa doença nos tirou tudo que é rotina e seguro", destaca Teresa. Para evitar a contaminação, os rituais de velar e enterrar os nossos foram suspensos, as despedidas se perderam no sem fim dos dias. "O ritual tem um significado: batizado, formatura… E o ritual para a morte dá significado para a dor. Quando você perde alguém numa pandemia, que você não pode olhar para o corpo daquela pessoa, isso pode ser um agravante. Os rituais proporcionam o abraço, o acolhimento, a solidariedade e tudo isso fica perdido na pandemia. Sepultar o corpo de uma pessoa amada é um fechamento daquele momento — não do luto, mas do momento. Hoje não falamos mais em aceitação do luto, falamos em adaptação do luto. Ninguém precisa aceitar o luto", elucida a psicóloga.
"A morte se parece com a primavera", versa a espanhola Marta Orriols no romance "Aprender a falar com as plantas" (2018). Para a psicóloga, morte também é poesia: "Mia Couto (escritor moçambicano) diz que o esquecimento é a verdadeira morte. O importante é que a gente esteja voltando devagar pra vida, seja molhando o quintal, fazendo uma receita diferente…". No ato da fala e no exercício da escrita, nossos mortos sobrevivem. "Encontrarmos quem a gente ama na nossa saudade", finaliza Teresa.
Organizado por Teresa Vera Gouvea e Karina Okajima Fukumitsu, a editora Summus lança o livro "Quando a morte chega em casa", coletânea de autores que abordam o tabu da morte na cultura oriental. Psicólogas especialistas em luto, as organizadoras reúnem treze relatos nos quais os autores compartilham, de maneira sensível e poética, experiências de vida em que a presença da morte lhes trouxe aprendizados transformadores. Entre os temas abordados estão a morte súbita e a morte lenta; a morte em idade precoce e em idade avançada; a perda de um pai e a perda de um filho; a morte esperada e inesperada; a morte desamparada e a morte acompanhada. O prefácio é de Maria Julia Kovács.
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