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Dez anos sem Chico Anysio: o que mudou na forma de fazer humor no Brasil?
Vida & Arte

Dez anos sem Chico Anysio: o que mudou na forma de fazer humor no Brasil?

Nos dez anos sem Chico Anysio, o Vida&Arte repercute o legado do humorista cearense em diálogo com os dilemas destes tempos. Após uma década de sua morte, o que mudou na forma de fazer humor no Brasil?
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Personagem de Chico, Salomé foi professora do presidente e se orgulha disso. Durante o mandato, Salomé liga para o ex-aluno e faz cobranças. Seu bordão é "Barbaridade, tchê". (Foto: Márcio Nunes/Divulgação Globo)
Foto: Márcio Nunes/Divulgação Globo Personagem de Chico, Salomé foi professora do presidente e se orgulha disso. Durante o mandato, Salomé liga para o ex-aluno e faz cobranças. Seu bordão é "Barbaridade, tchê".

Chico Anysio (1931-2012) lembra muitos. “Vou ser aquele que faz vários” — dizia o cearense no início da carreira, na década de 1950. O eterno mestre do humor não só “fez vários”. Dedicou a vida à criação de mais de 200 histórias. Professor Raimundo, Salomé, Popó, Quem-quem e Coalhada são só alguns dos personagens. Há exatamente uma década, neste 23 de março, o múltiplo Francisco Anysio de Oliveira Paula Filho morreu no Rio de Janeiro, aos 80 anos.

Nascido em Maranguape, Chico levava a arte do riso, curiosamente, muito “a sério”. Nestes dez anos sem o humorista, como seu legado dialoga com estes tempos acelerados de internet? O que mudou na forma de fazer humor no Brasil? Num tempo em que uma nova geração do humor ganha cada vez mais destaque por meio das mídias sociais, o que Chico faria? Ao Vida&Arte, os veteranos Jader Soares e Carri Costa analisam cenários; Bruno Brasileiro, iniciante na cena do humor, aborda novos formatos; e o humorista André Lucas, filho de Chico, repercute o legado do pai.

O mestre não viu a ascensão do grupo carioca Porta dos Fundos (de Fábio Porchat, Gregório Duvivier, Rafael Portugal e mais atores) na plataforma de vídeos YouTube, nem conheceu o conterrâneo Max Petterson, o piauiense Whindersson Nunes, a pernambucana Ademara ou a mineira Pequena Lô, por exemplo. Mas, “se vivo fosse, Chico se adaptaria a estes tempos”, defende o humorista, historiador e pesquisador de humor Jader Soares. Conhecido como Zebrinha, ele é quem comanda o Theatro Chico Anysio (TCA), no bairro Benfica, onde também funciona o Museu do Humor Cearense.

Em seu ofício, Chico fez o Brasil rir a partir de textos escritos em máquinas datilográficas. Depois, passou a redigir no computador. Seu legado se estende por várias mídias: rádio, televisão, cinema, teatro, artes plásticas, literatura e música. Acaba não sendo difícil pensar que ele também estaria criando em plataformas como YouTube, Instagram e TikTok. Jader Soares lembra que, de 2007 a 2009, Chico manteve um blog pessoal no Bloglog, do Grupo Globo. Naquele diário virtual, ele apresentava crônicas diversas.

“O humor era feito em casa, muitas vezes na solidão, depois colocado em palcos, telas. Com a internet, quase não há mais solidão. Na mesma hora, há uma reação imediata”, analisa Jader. Ao passo que imagina o mestre do humor nas mídias sociais, Zebrinha também afirma: “Chico morreu na hora certa. Ele fazia um humor social, com críticas sociais. Respirava humor e era genial no que fazia. Deu voz ao povo pobre e sofrido deste País. Fazia denúncia com graça. Ao mesmo tempo que acho que ele se reinventaria, talvez também pudesse achar entediante. Como ele faria, por exemplo, a Salomé?”.

Personagem de Chico, a gaúcha Salomé nutria orgulho por ter sido professora do presidente da república. Telefonava para o gestor em mandato e fazia cobranças. Em cena, ela ligou para Figueiredo (último presidente da ditadura militar), Sarney, Collor, Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff.

Jader questiona: “Se hoje Salomé ligasse para o presidente de plantão (Jair Bolsonaro) e falasse: É verdade que quando vocês estão num restaurante em família, a conta é dividida por todos, ou seja, bem rachadinha? Parte da população iria xingá-lo na internet. Isso poderia tirar Chico do sério”.

Jader Soares, o Zebrinha, e Chico Anysio, em arquivo pessoal de 2008(Foto: Acervo pessoal/Jader Soares)
Foto: Acervo pessoal/Jader Soares Jader Soares, o Zebrinha, e Chico Anysio, em arquivo pessoal de 2008

Jader ressalta “o desprezo inexplicável dos canais abertos de televisão quanto ao humor” ao longo desses dez anos. “Em 1980, o Brasil tinha vários programas. Globo e Record baniram o humor da programação. Apenas no SBT que permanece com ‘A Praça é Nossa’. O que há está em canais fechados, como Viva, com a própria Escolinha do Professor Raimundo; e Multishow”. Segundo Zebrinha, os meios tradicionais podem se adaptar. “A prova disso é que lotamos o TCA. E quem vai não assiste só ao show, mas também antes ou depois visita a história do humor cearense no Museu. Após o falecimento de Chico, continuamos a fazer o que fazíamos: fomentar talentos, abrir espaços”.

Para o ator e dramaturgo Carri Costa, o riso está ligado às histórias das pessoas. Essa graça pode vir de algo que já foi visto, de surpresas, mensagens subliminares ou mesmo explícitas. Também pesquisador do humor e fundador do Teatro da Praia, localizado na Praia de Iracema, ele acrescenta: “O riso não pode vir acompanhado de uma desumanidade ou preconceito. E, nos últimos dez anos, o público passou a cobrar mais essa respeitabilidade. Não por moralismo, mas por humanidade. Não cabe mais piadas de cunho preconceituoso, que aconteciam há dez, 15 ou 20 anos. A humanidade matura para isso. Chico Anysio, para mim, é o mestre de todos os humoristas. Creio que, se estivesse aqui com a gente, ele também sentiria essa preocupação com a não agressão”.

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Segundo Carri, “a piada e o bom riso têm de ser democráticos em todos os aspectos”. “Não posso provocar o riso achincalhando uma outra pessoa, outro segmento ou alguma deficiência. A piada deixa de acontecer quando parte para a desumanidade. Essa é a principal mudança que aconteceu e não adianta fugir. É irreversível”. De acordo com o ator, o Teatro da Praia e a Cia. de Molecagem trabalham com uma comédia questionadora, satírica. Seus 40 anos de carreira e suas quase três décadas com o equipamento serviram como um termômetro para entender “as feridas do riso”.

Carri considera: “Estamos vivendo um tempo de comédia de situação, onde a cena provoca riso mais do que a piada. Na internet, tem muito disso, da encenação vivida. Não adianta querer fugir da internet, ela veio para ficar. Mas você também não pode ser regido por ela, seja autônomo diante disso tudo, um proponente de mudança ou de afirmação”.

Bruno Brasileiro, cineasta e comediante, diz: “Não sei muito bem o que sou, mas, assim como Chico, quero fazer muita coisa”. Iniciante na cena do humor na Capital, ele tem feito graça da rotina pelo Instagram e shows stand up. Pensa em criar personagens e fazer curso de teatro. “Tenho essa comédia de conteúdo digital, que é algo que as redes possibilitam”. Sobre os novos formatos, Bruno destaca: “Com o YouTube, teve toda uma exploração para saber como fazer e isso está acontecendo o tempo todo. Agora, tem o TikTok e a gente tem que saber comunicar de uma forma rápida e entender como esse formato pode ajudar a entregar conteúdos”.

Para Bruno, a internet também pode ser um meio de divulgação dos shows. “Não dá para fazer comédia stand-up sem pessoas. Como estou começando, já senti extrema necessidade de divulgar. Quero que esse público vá ao teatro, uso a internet como um gancho. Meio que vou buscar essas pessoas pela internet. E está dando certo. Algumas pessoas falam comigo dizendo que acham muito interessante, outros estão indo e estão gostando. Agora, elas estão tendo vontade de voltar e não necessariamente para me ver, mas também para ver outros artistas e estarem num teatro vendo comédia”.

Bruno aponta a facilidade de ter acesso a relíquias da história da comédia. “Vi, por exemplo, um show que Chico Anysio fez nos Estados Unidos que não teria como eu ter acesso com tanta facilidade se não tivesse no YouTube, não sei se teria fácil em VHS ou em algo físico. Para a gente que está começando, é ótimo ter referências. A gente precisa buscar essas referências para entender o que já foi feito.

Contudo, algo o incomoda no meio conectado: o imediatismo. “Se posto uma coisa agora, pode fervilhar e todo mundo falar sobre isso, mas daqui a três horas talvez já não seja mais nada. Também é ótimo postar conteúdo sobre comédia ou nossos textos de stand-up, mas tem um detalhe muito cruel que é: se a gente solta um texto na internet, vai ser uma piada que todo mundo já vai conhecer, então não pode ser levada para o show. Você meio que sacrifica uma piada para conseguir público, a não ser que você tenha seja muito bom em escrever piadas muito boas tanto para a internet quanto para o presencial. É possível, mas é mais complicado para quem está começando”.

Chico Anysio como Professor Raimundo e Aranha, personagem de André Lucas, seu filho(Foto: Acervo pessoal/André Lucas)
Foto: Acervo pessoal/André Lucas Chico Anysio como Professor Raimundo e Aranha, personagem de André Lucas, seu filho

O humorista André Lucas, filho de Chico, assegura: “Desses dez anos para cá, o humor perdeu muito a graça. Porque perdemos um humor inteligente. Com todo respeito a todos os humoristas do Brasil, principalmente os que fazem televisão, o humor caiu muito. Não tem mais a versatilidade que tinha através de Chico Anysio e os artistas que trabalhavam com ele. A Escolinha do Professor Raimundo até hoje é o programa de maior audiência do mundo ocidental, onde antigos humoristas brilhavam e os novos brilhavam, brilhariam também. Caindo a Escolinha, se perdeu muito. Se perdeu os antigos e se perdeu os novos que poderiam estar surgindo aí. Tem gente boa no humor brasileiro fazendo coisas? Tem. Mas fazendo coisas boas. Não ótimas. De zero a dez, nota cinco. Estou dizendo isso porque, com a ausência de Chico Anysio, o humor perdeu muito. Acredito que outro Chico Anysio nunca mais… Pode ser até que venha melhor até, mas outro Chico Anysio nunca mais”.

Onde assistir Chico

Escolinha do Professor Raimundo. No programa comandado por Chico, grandes nomes do humor são os "alunos" da sala de aula do Professor Raimundo. A atração conta com transmissões no Canal Viva na grade de programação da manhã e da noite. Os episódios também estão disponíveis para assinantes do serviço de streaming Globoplay.

Chico Total. Na série, Chico interpreta personagens de sucesso da sua carreira, como Neide Taubaté, Nazareno, Justo Veríssimo, Salomé e mais. A produção conta com nove episódios e pode ser assistida no Globoplay.

Especial. O programa Conversa com Bial apresenta uma série especial em homenagem a Chico Anysio, com conversas entre familiares e amigos sobre vida e ofício do humorista. Nizo Neto, Bruno Mazzeo, André Lucas, Cininha de Paula, Heloísa Perissé e Tom Cavalcante compartilham lembranças. Disponível no Globoplay.

Theatro Chico Anysio

Onde: av. da Universidade, 2175 - Benfica
Mais info: teatrochicoanysio.com.br e @zebrinhahumorista

Teatro da Praia
Onde: av. Monsenhor Tabosa, 177 - Praia de Iracema
Mais info: @teatrodapraia e @carricosta

Podcast Vida&Arte

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