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Balanço: Artistas avaliam a cultura no governo de Camilo Santana
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Balanço: Artistas avaliam a cultura no governo de Camilo Santana

Artistas avaliam Secult-CE nas duas últimas gestões de Camilo Santana. Expansão do diálogo com o setor e falha na manutenção de equipamentos se destacam
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Com liberação de eventos, equipamentos públicos do Ceará poderão receber atrações culturais com até 200 pessoas em áreas abertas e com 100 pessoas em locais fechados (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Com liberação de eventos, equipamentos públicos do Ceará poderão receber atrações culturais com até 200 pessoas em áreas abertas e com 100 pessoas em locais fechados

"Cultura como vetor importante de formação, de desenvolvimento, impulsionadora da economia, das ciências, da educação, das liberdades. Uma pasta estratégica para o Governo, para o cidadão, para a sociedade por seu poder de transformação social", definiu o então governador Camilo Santana (PT) no Plano de Gestão 2019/2022 em novembro do ano passado. Ainda nas campanhas eleitorais, o cratense incluiu ações para a cultura nos programas de governo — e, ao longo dos sete anos e três meses da gestão de Camilo, a área experimentou diversas mudanças. Destacam-se a ampla inauguração de equipamentos, os severos impactos da pandemia de Covid-19 no setor e as falhas na manutenção de espaços artísticos e culturais já construídos.

No Plano de Governo de 2014, Camilo se comprometeu a triplicar o investimento em cultura; construir centros culturais no interior do Estado; ampliar a Redes de pontos de Cultura para todos os municípios; implantar o Programa Jovens Criadores; criar escolas de tempo integral da cultura e construir uma política para fortalecer editais, festivais, festas populares e eventos culturais. Com o historiador e doutor em Educação Fabiano dos Santos Piúba à frente da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult-CE), o Governo entregou equipamentos previstos: só na última semana de gestão do governador, que deixou o cargo para concorrer ao Senado nas próximas eleições, o Complexo Cultural Estação das Artes Belchior, o novo Complexo do Museu da Imagem e do Som do Ceará Chico Albuquerque e o Centro Cultural Cariri Sérvulo Esmeraldo foram inaugurados.

A entrega do Porto Dragão/HUB Cultural do Ceará em 2019; a abertura da Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco em 2018; a reforma e reabertura do Cineteatro São Luiz em 2015 e a consolidação do Porto Iracema das Artes também são destaques positivos da gestão. Após sete anos fechada para uma morosa atualização adiada muitas vezes, a Biblioteca Pública Estadual do Ceará (BECE) — antiga Biblioteca Pública Governador Menezes Pimentel — foi reintroduzida à população cearense em 2021. O investimento total na BECE foi de R$ 21.671.697,79, sendo R$ 11.348.762,75 destinados à obra estrutural e R$ ‭10.322.935,04‬ à modernização, como aquisição de equipamentos, mobiliário, ambientação e acervo.

Um dos poucos equipamentos culturais públicos na periferia de Fortaleza e importante marco na descentralização do circuito, o Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ) existe há mais de 15 anos resistindo ao cenário de aridez de fomentos. Em maio de 2014, o Vida&Arte acompanhou a luta da comunidade para garantir constância na formação e também reformas estruturais. Já em 2019, os extensos períodos de “seca” de recursos prejudicavam o pleno funcionamento do CCBJ. Mais recentemente, em janeiro de 2020, o centro foi ocupado por uma "programação artística insurgente" promovida pelo Fórum de Cultura do Grande Bom Jardim que contou com ações de cobrança institucional.

O crescimento orçamentário de R$ 1,7 milhão em 2015 para R$ 7,7 milhões em 2021 no CCBJ foi fruto de intensa mobilização social. Diversas vezes, as atividades do equipamento gerido pelo Instituto Dragão do Mar (IDM) foram paralisadas pela demora no repasse de recursos. A pandemia de Covid-19 também afetou o setor cultural: o número de postos de trabalho ligados à economia criativa no Brasil — setor que engloba áreas que geram riqueza pela inovação, como publicidade, arquitetura, design, cinema, rádio, TV, tecnologia da informação, música e artes cênicas e visuais — diminuiu 4% no primeiro trimestre de 2021 em relação ao mesmo período de 2020. No Ceará, a breve implementação da Lei Aldir Blanc foi importante, mas artistas criticam a descontinuidade dos projetos e a burocratização dos editais da Secult-CE.

"A ausência de programações contínuas quebra a formação e o estabelecimento da plateia, de público. A falta de entendimento de gestores dos teatros sobre a importância de temporadas para a linguagem chega a ser criminoso, pois impede que os trabalhos dos grupos reverberem na Cidade tornando a produção teatral inacessível ao público. Não há um entendimento da importância da formação e fidelização de plateia dos gestores dos teatros que só apostam em eventos. O teatro do Dragão e o teatro do Porto Dragão são exemplos dessa prática, viraram teatros de eventos", ressalta Rogério Mesquita, ator e produtor do Grupo Bagaceira de Teatro.

Para Rogério, a habilitação dos editais da Secult-CE é confusa. "Em um edital, pessoa física atrelada ao CNPJ de um grupo é aceita; no seguinte, não é mais. Há casos em que, no mesmo edital, projetos foram habilitados atrelando pessoa física ao grupo com CNPJ e outros foram desabilitados pelo mesmo motivo. Vindo de uma secretaria que descontinuidade é uma marca (o Edital Ceará de Incentivo às Artes, por exemplo, demorou sete anos para ser lançado), isso mexe com a saúde mental dos artistas, que não são vistos como trabalhadores. Infelizmente, a atual gestão não lidou com as demandas de linguagens como a do teatro com a devida atenção, pois o impacto negativo na economia da cultura com falta de continuidade nos editais é enorme. O valor dos editais para o segmento do teatro mostram que a escuta que a Secult/CE diz ter sobre as demandas da linguagem mostrou-se surda. Para mim, essas práticas tornaram inviável viver do meu trabalho artístico no Ceará. Pela primeira vez em 25 anos de carreira, penso em desistir. Essa Secretaria fez a produção de teatro sumir do mapa de Fortaleza, tornou o nosso trabalho irrelevante para a cidade. Não fomos escutados", finaliza.

No audiovisual, a situação também é delicada: o cancelamento do XIV Edital Ceará de Cinema e Vídeo no ano passado afetou uma cadeia de produtores. Uma fonte que preferiu não ser identificada afirmou ao Vida&Arte que o setor do audiovisual foi muito prejudicado nessa gestão. "O último Edital Ceará de Cinema e Vídeo foi lançado em 2016. Estamos em 2022 e de 2016 para cá não tivemos nenhum edital. A Secult-CE chegou a lançar um edital que foi cancelado e também foi lançado o edital da Aldir Blanc — que a pasta entende como sendo uma ação da secretaria também, mas enquanto artistas a gente entende que esse dinheiro não vem da Secretaria, vem da União", adiciona.

"Apesar de ser uma gestão que é aberta ao diálogo, na prática foi uma gestão que nos deixou numa situação muito difícil. O Ceará Filmes é um projeto muito falado pelo poder público, mas eu sinto que para o nosso trabalho isso praticamente não existiu ainda. A Secult lançou esse edital há dias atrás e eles já usam a chancela do Ceará Filmes, mas é um edital com pouquíssima verba, são linhas de valores que não atendem a necessidade do setor. Em um ano, tivemos acréscimos de quase 100% em áreas como alimentação e transporte… Esses orçamentos de longa metragem R$1,200 mi, R$1,250 mi não atendem mais a demanda de custos. No fim, eu acho que a gente viveu um retrocesso. A gente conseguiu avançar em termos de diálogo, mas o diálogo não levou a nada. Entre 2010 e 2014, por exemplo, a gente tinha editais anuais — e agora a gente está há seis anos sem. Isso é muito difícil porque o setor como um todo precisa ter uma continuidade, as pessoas não vivem de um projeto em um ano e realizam outro só três anos depois. Sem continuidade, os artistas não conseguem viver da sua arte, do seu trabalho. A gente entende que há burocracias internas do Estado, que é muito difícil, mas a secretaria tem que estar lutando por nós", complementa.

Para o poeta e educador social Baticum Proletário, coordenador da Biblioteca Comunitária Okupação, a atuação da Secult-CE precisa ir muito além do diálogo. "Há um canal de comunicação, existe uma escuta, um cuidado para lidar com as bibliotecas populares. Já participamos de algumas reuniões juntos e a gente saiu com propostas, mas bibliotecas populares têm que ter recursos públicos que vão além dos editais. Nós temos agora um edital que foi dividido por categorias — ele inclui bibliotecas comunitárias e as bibliotecas populares. São apenas 20 projetos que serão selecionados e o valor é de cerca de R$20 mil. Nós temos um movimento chamado Biblioteca Nazaria Urgente que tem 12 bibliotecas populares espalhadas pela Cidade de Fortaleza. As bibliotecas populares têm particularidades e o que nos une é a característica de serem coordenadas, idealizadas e desenvolvidas por pessoas comuns, artistas ou educadores e educadoras. Apesar da novidade deste edital, ele não contempla as bibliotecas populares porque o valor é pouco e o número de projetos selecionados, também".

Agora, a luta dos articuladores é por efetivar os fomentos públicos. Todas as bibliotecas do movimento Biblioteca Nazaria Urgente que se inscreveram no Edital de Bibliotecas Comunitárias e Populares do Ceará foram inabilitadas por questões documentais. "O próprio edital está induzindo a esse erro. É preciso ir além", encerra Baticum.

O Vida&Arte enviou perguntas para a Secult-CE, mas não obteve respostas até o fechamento desta edição.

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