O Brasil é um horror. Mais precisamente, um horror gótico, povoado de criaturas que habitam o imaginário da região Nordeste. Do vampiro ao morto-vivo, passando por outras personagens que se notabilizaram em histórias de assombro, "Gótico nordestino", do escritor e crítico literário paraibano Cristhiano Aguiar, faz desfilar um panteão fantasmagórico que sempre o acompanhou, da infância até a vida adulta.
Só agora, porém, esses seres ganharam vida - ou uma sobrevida. Em nove contos, publicados em volume pela Alfaguara, o autor hibridiza tradições (cangaço, por exemplo) e gêneros diferentes, operando com uma mescla de matrizes culturais que resultam numa projeção muito particular do país de hoje, onde formas arcaicas e modernas de política se reencontram.
Da combinação de sci-fi com fantasmas, de zumbis com animais inteligentes, de incendiários com noivas, chega-se a uma literatura que recorre aos elementos da cultura massiva, recombinando-os de modo a ganharem nova roupagem e leitura num contexto social diverso.
É o Brasil lido por meio de outra chave, cujos elementos se articulam para criar esse painel em que Zé do Caixão, RPG e "Monstro do pântano" dividem espaço com Mariana Enríquez e Samanta Schweblin, para citar apenas duas autoras cujas obras são fundamentais no trabalho do escritor brasileiro.
Em conversa com O POVO por videochamada, Aguiar, que também é professor de Literatura do programa de pós-graduação da Faculdade Mackenzie, admite que, por muito tempo, essas referências da literatura do gênero de horror estiveram como que apagadas do que escrevia.
"Isso aparecia no meu trabalho, mas eu reprimia, porque parecia que a literatura com L maiúsculo estava em outro lugar e eu buscava esse outro lugar", conta.
A reconciliação com esse universo criativo se deu apenas em 2018, depois de publicar "Na outra margem, o leviatã (Lote 42)", obra em que manipula realidade e delírio em narrativas curtas de teor assemelhado com o de "Gótico nordestino".
"Quando publiquei meu livro anterior, que já tem um pouco disso, senti que eu precisava ir para outro lugar e esse lugar foi fazer duas coisas: assumir esse elemento, o gótico, a literatura fantástica, a ficção especulativa, e voltar a escrever sobre o Nordeste", anuncia o escritor.
Lugar a partir do qual fala, a região atravessa o livro simbólica e culturalmente, como território temático e histórico, ainda que se trate de uma história costurada com peças fantasia e calcada na fabulação.
Nessa trama, a ditadura imiscui-se ao fantástico, o político ao estranho. O efeito é o de acentuação de aspectos do real, com contornos que se definem com mais legibilidade apenas quando contrastados com esse mundo do insólito.
Talvez por isso, livros como os de Aguiar, e as obras já consagradas de Enríquez e Schweblin, ambas argentinas, têm se revelado fecundos para se analisar o momento sociopolítico contemporâneo. Refletem, por distorção, o horror do real.
Na conversa, Aguiar explica que o primeiro conto escrito do volume, "Firestarter", "é uma reação ao processo eleitoral que vivemos" no Brasil.
Elaborada quatro anos atrás, na esteira da vitória do então deputado Jair Bolsonaro na disputa pela Presidência, "a narrativa foi para mim uma forma de metabolizar mesmo".
"Seria difícil em 2018", acrescenta, "fazer um conto de crítica à ascensão da extrema direita de maneira tão direta, então acabei metaforizando isso com a ideia dos incêndios".
A história logo acabaria por se mostrar tristemente premonitória, como evidenciam os números sucessivos de queimadas no País e o desmonte dos órgãos de fiscalização ambiental. Naquele momento, embora não soubesse, Aguiar não escrevia uma distopia, mas antecipava o futuro.
Sobre o boom de literatura de gênero, notadamente os do horror e da ficção científica (o crítico literário Fredric Jameson dedica livro recente ao assunto), do qual "Gótico nordestino" é representativo, Aguiar reflete que "horror e fantasia sempre foram vistos como subcultura e subliteratura".
"Mas nos últimos 20 ou 30 anos, a percepção do público parece ter mudado. E, nas últimas décadas, começamos a ter com mais consistência de qualidade novas obras na TV, nos games, no cinema e na literatura que chegaram ao público de alguma maneira", responde.
A outra hipótese para essa onda, já chamada de pós-horror, pode parecer piada, mas tem um fundo de verdade, brinca o autor: "nerds dos anos 1980 e 1990, que hoje estão nas redações de jornais e universidades, cresceram".
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Gótico Nordestino
Editora: Alfaguara
Valor sugerido: R$ 42,90
136 páginas
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