Nos idos de 2002, quando já tinha para si que nem tudo no mundo carece de explicação, Gilmar de Carvalho enamorou-se. Subiu num ônibus no Pici e, ao embarcar, deparou-se com o cobrador lendo "Lucíola" (1862), romance de José de Alencar. "Gilmar começou a conversar comigo, achou interessante um cobrador lendo. Reparou que, na minha caixa de troco, tinha também um livro de autoria dele. Trocamos contatos e logo ele me convidou para acompanhar as viagens de campo que fazia com os alunos da UFC para o Cariri… Tornou-me fotógrafo", relembra Francisco Sousa, companheiro do professor, escritor, jornalista e publicitário no trabalho e na vida. "Gilmar era assim, generoso com todos".
Neste domingo, 17 de abril, a partida de Francisco Gilmar Cavalcante de Carvalho completa um ano. Nascido em 1949, entre dias quentes que passam até mais devagar e noites mornas na cidade de Sobral, Gilmar conheceu "o pedregulho, a areia, a extrema beleza e a profunda miséria" do Ceará Profundo: "Fomos à Ibiapaba, Sertão Central, Inhamuns, Vale do Jaguaribe. Visitamos todos os 198 municípios cearenses. Eu nem sei o que é o Ceará, se é que algum dia soube", desvelou o professor em entrevista às Páginas Azuis do O POVO em 2020. Homem com asas nos pés, adentrou o sertão ao lado do fotógrafo Francisco Sousa e compartilhou contos e causos. Autor de mais de 50 livros, o inflamável pesquisador formou gerações de comunicadores no Estado.
"As pessoas não morrem, ficam encantadas", proferiu o escritor mineiro João Guimarães Rosa. Vítima de Covid-19, Gilmar encantou-se numa saudade que é o revés de um parto. "Até hoje eu não consigo me desfazer do armário dele… As blusas, os sapatos, tudo está guardado. É como se eu estivesse esperando, sabe? É como se eu estivesse esperando ele voltar", compartilha Francisco. "Viajar com o Gilmar foi a experiência mais importante da minha vida. Eu sou do Pará, então olhava o Ceará como quem vê Santarém: lá, os matos sempre ficam verdes, não secam como aqui. Quando eu via a floresta toda branca e seca, eu olhava como tudo verde… Fotografava toda a fartura, a resiliência, só conseguia enxergar vida, muita vida adaptada àquele habitat. O Gilmar olhava para mim e via isso", rememora.
Hoje, o desejo de Francisco é criar o Instituto Gilmar de Carvalho com o auxílio de amigos do mestre. Em 2021, o plenário da Assembleia Legislativa aprovou um projeto de lei de autoria do deputado estadual Renato Roseno que denomina de Professor Gilmar de Carvalho o Museu de Arte Popular dos Mestres e Mestras da Cultura do Ceará. "Eu tenho grandes pretensões ainda. Gostaria de ter a nossa casa para viabilizar projetos e continuar o trabalho do Gilmar", explica o fotógrafo, que vive agora o processo de reconhecimento da relação e partilha de bens. "Eu vou começar sem dinheiro, mas acredito que vou começar com amigos que estão do meu lado. Quero um mês inteiro de comemoração ao Gilmar, quero viajar com alunos e professores pelo interior do Ceará, pelo Nordeste. Tenho vontade de continuar esse trabalho, de tornar ele universal".
Na programação de homenagens ao mestre, Francisco adiciona: "Providenciei o áudio integral do livro 'Parabelum' com um narrador de Florianópolis e pretendo fazer uma live com amigos a fim de que, na ocasião, seja anunciada a veiculação em um canal do YouTube do narrador Carlos Eduardo Valente o prefácio do 'Parabelum' de João Silvério Trevisan, e o primeiro capítulo 'Anunciação'".
A pesquisadora Lídia Barroso, profunda conhecedora da obra de Gilmar de Carvalho, ecoa a voz do mestre. "Conheci o professor Gilmar de Carvalho na BECE, em 2006, ministrando aula sobre Patativa do Assaré, aos alunos que fariam o vestibular da UFC naquele ano. Dias depois, o reencontrei nos corredores do Bloco do Curso de História, na UFC. Foi naqueles corredores que me aproximei dele e comentei que havia assistido à palestra dele na BECE. Alí mesmo, o professor Gilmar abriu uma sacola de pano, daquelas que ele sempre usava, tirou um livro e autografou pra mim: 'Para Lídia, um pouco da vida do poeta maior'. Era um livro sobre Patativa do Assaré que tenho até hoje. A minha admiração por Gilmar de Carvalho nasceu naquele momento". Em 2009, quando teve contato com a obra ficcional dele, encontrou sua paixão.
"Durante a pandemia, continuei em contato com o professor e ele me falava que eu deveria fazer o doutorado. Meses antes de sua partida inesperada, dei-lhe a notícia que eu havia entrado para o doutorado, também em Letras. Lembro-me da sua alegria. Torceu demais por mim. Minha vida acadêmica toda tem a ver com ele. Continuo estudando sua obra e é sempre uma emoção reencontrá-lo nas páginas que leio. Sinto sua energia no que pesquiso. Depois da sua partida, sinto mais necessidade de divulgar o legado que ele deixou ao Brasil e ao Ceará. Falar de Gilmar de Carvalho é reconhecer e valorizar sua contribuição às mais diversas áreas do conhecimento. É isso que o faz ser imortal. Além do grande amigo e mestre que foi para todos nós, é uma voz que ecoará para sempre em todas as manifestações artísticas do nosso povo. Não há como olhar para o céu carregado de nuvens que prenunciam chuva e deixar de pensar na expressão 'bonito pra chover'. Gilmar é tudo isso e muito mais na minha vida", encerra Lídia.
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