"A cultura é dinâmica e diversa e se pode, sim, recriar a cultura da pintura corporal a partir do que se tem hoje como simbólico dentro de nossas aldeias, como forma de reafirmação e reapropriação de uma cultura tradicional", elabora, no texto da monografia, o artista, pesquisador e líder indígena Benício Pitaguary (1992-2022). O gesto de reafirmação e reapropriação descrito por ele no trabalho pode ser visto na prática de artistas como Acauã Pitaguary, Merremii Karão Jaguaribaras, Adriane Kariú Oliveira e Rodrigo Tremembé.
Nos Kariú-Kariri, por exemplo, essa dinamicidade da expressão cultural das pinturas é acentuada pelos processos de apagamento do povo. A prática é de criação e recriação. "Nós criamos o grafismo, compartilhamos uns com os outros contando como esse grafismo foi concebido, decidimos em conjunto quando vamos usá-lo e os significados que ele traz. Há uma grande sensibilidade nesse processo", exemplifica Adriane.
Leia a 1ª parte | Jovens artistas indígenas celebram ancestralidade a partir de grafismos
Neste sentido, Merremmii Karão Jaguaribaras compartilha o que a levou, mais recentemente, a trazer as artes dos grafismos também para as telas. "A ideia veio com a pandemia e o isolamento social, visto que não podíamos ter contato físico com outras pessoas fora do meu Kalembre (aldeia)", inicia, complementando: "Sabemos que por muito tempo a arte indígena sofreu com os projetos coloniais, como também sofreu com ideologias eugênicas que se recusavam a aceitar a diversidade, as pluralidades. Senti a necessidade de mostrar essas linguagens a fim de quebrar estereótipos ainda existentes sobre os grafismos e pinturas de nós, indígenas", elabora.
Uma intenção semelhante moveu o estilista Rodrigo Tremembé, que ampliou o escopo dos grafismos com os quais convive desde o nascimento para as roupas e acessórios que cria. "A moda veio para minha vida como ferramenta de resistência no ano de 2020, após um episódio de cyberbullying onde sofri discriminação racial por conta do tom de minha pele ser claro, ataques preconceituosos por conta dos meus traços de miscigenação", retoma.
"Isso me levou a refletir o quanto o colonialismo é violento e, também, sobre a necessidade de nós, povos indígenas, não nos calarmos diante desse sistema. Fazer moda indígena vai além da estética de uma peça, é sobre representatividade e ocupação de espaços antes inimagináveis a nós povos indígenas, é fazer do vestir — fruto do ego conquistador europeu — uma ferramenta de luta e resistência", atesta.
As múltiplas leituras e utilizações dos grafismos por parte dos povos indígenas refletem, enfim, a multiplicidade e também a força da expressão cultural ancestral. "Um grafismo pode ser um adorno, pode representar um momento importante da vida, pode contar uma história, representar a força de um encantado", elenca Adriane.
"Os grafismos e pinturas indígenas são linhas de ligação que nos conectam a outros ambientes e protegem vários mundos. Dependendo da ocasião, são também manifestos estampados em nosso corpo como grito de guerra", dialoga Merremii. "Expor nossas artes é como plantar uma semente fertilizada de conhecimento para brotar no futuro. Por isso é importante que vejam, apreciem e se conectem com nossas artes pois elas são ligações que nos unem ao mais profundo e sincero sentimento", finaliza.
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