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O que a polarização política no Brasil tem a ver com a moda?
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O que a polarização política no Brasil tem a ver com a moda?

Polarização política no Brasil de 2022 provoca diálogo entre moda, ativismo e política partidária. Peças com rostos de candidatos, símbolos de movimentos e mensagens que convocam a causas e ideologias emergem nesse contexto
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Moda, ativismo e política: no Brasil de 2022, a polarização política provoca um movimento na moda de rua que engloba peças de candidatos e de partidos, estampas de movimentos políticos, de causas e ideologias, além de novos significados para trajes já conhecidos (Foto: Robson Pires)
Foto: Robson Pires Moda, ativismo e política: no Brasil de 2022, a polarização política provoca um movimento na moda de rua que engloba peças de candidatos e de partidos, estampas de movimentos políticos, de causas e ideologias, além de novos significados para trajes já conhecidos

"Ideologia, eu quero uma pra viver", exclamou Cazuza em canção composta com Frejat. Talvez a faixa "Ideologia" (1988), muito reverberada nos idos da década de 1980, seja adequada ao Brasil de 2022. Num momento de intensa polarização política, provocada principalmente pelas eleições a serem realizadas neste ano no País, camisas com rostos de políticos (especialmente de candidatos à presidência), bonés com símbolos de movimentos sociais, novos significados para trajes já conhecidos (como a camisa da seleção brasileira de futebol) e peças diversas com mensagens ideológicas estampadas ganham a moda de rua nacional. Sob esse contexto, emerge a discussão sobre moda, ativismo e política partidária.

Num momento anterior, essas peças poderiam ser elementos pontuais no guarda-roupa, ligadas essencialmente ao período de campanha eleitoral. Eram distribuídas por eleitores durante as próprias eleições, chegando a serem consideradas "bregas" ou usadas até mesmo como panos de chão após o período. Com o cenário de polarização política intensificado na segunda década do milênio, itens de vestuário com essas especificações passaram à disposição no mercado como algo "fashion", um elemento de representatividade e identificação com causas, partidos ou figuras.

As ideias, seja de movimentos que se autointitulam ligados aos espectros políticos de esquerda, direita ou centro, parecem transbordar do pensamento. Quem veste acaba desfilando por aí escolhas, convicções e o que defende por meio do vestir. Renata Santiago, artista, designer, professora e consultora, explica: "É impossível dissociar a moda da política. Se a gente pensa na moda como forma de expressão, em que posso recriar uma segunda pele, enquanto um manto, enquanto algo que fala de mim, como vou dissociar isso da política? A política tem essa relação com a posse, a cidade, o coletivo, com interesses individuais, com o todo e com outras pessoas".

Essa moda ligada ao ativismo também precisa ser pensada, diz Renata. "Não como algo fútil, mas como um poder micropolítico, desde a juventude até todas as camadas etárias e sociais, de gênero e sexo". A roupa, então, se configura como uma "forma ativa", uma "veia de protesto no contexto brasileiro".

Renata acrescenta: "Vamos completar uma década de sequências complexas e destruição de pautas conquistadas. Cabe aos artistas, estilistas e profissionais de moda trabalhar com questões vivenciadas nesse tempo. A moda capta o espírito do tempo, tanto dita quanto é reflexo. Um sistema muito ligado à retroalimentação. A gente tem um corpo mídia, uma automidia que expressa mudanças".

Segundo a pesquisadora, a moda está interligada às metamorfoses, em "dar corpo" a questões em erupção no mundo contemporâneo, seja nas ruas, na juventude, na expressão de escolhas políticas. A propagação disso pode ser feita por meio de estampas, de formas sutis ou mesmo mais diretas.

Isso acaba dando até novos significados a certas peças. É o caso das camisetas oficiais da seleção brasileira de futebol, bastante utilizada por grupos de direita. Movimentos desse espectro também costumam dialogar com o preto e as cores da Bandeira do Brasil em peças. Candidatos e partidos ligados a esses grupos também aderem a essas cores.

Nos movimentos de esquerda, há a predominância da cor vermelha. No movimento comunista, representaria o sangue da classe operária. Outros segmentos lembram que, na cultura dos povos indígenas, a palavra "brasil" significa "vermelho". Seria uma alusão ao vermelho da madeira do Pau-Brasil, árvore que deu nome ao País. Além dos movimentos e grupos de eleitores, partidos que se autodefinem de esquerda também utilizam a cor.

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No contexto do Brasil de 2022, esses dois cenários aparecem com frequência. Algumas vertentes englobam o uso do verde, com mensagens sobre a preservação da natureza, além do amarelo e do azul como uma "terceira via" a esses dois pólos, associado a partidos que já utilizam essas cores. Numa breve pesquisa on-line, é possível encontrar marcas de lojas virtuais que comercializam produtos de moda nessa perspectiva da política partidária e do ativismo.

Recentemente, a cantora Anitta se apresentou no festival internacional Coachella com um "look" com as cores da bandeira. Após o show, a artista disse em seu Twitter: "Ninguém pode se apropriar do significado das cores da bandeira do nosso país".  (Foto: Kevin Winter / Getty Images / AFP)
Foto: Kevin Winter / Getty Images / AFP Recentemente, a cantora Anitta se apresentou no festival internacional Coachella com um "look" com as cores da bandeira. Após o show, a artista disse em seu Twitter: "Ninguém pode se apropriar do significado das cores da bandeira do nosso país".

Panorama das lojas

A loja “Que isso camarada” propõe, em sua plataforma virtual: “Vista uma camisa, vista uma causa”. A marca se coloca no mercado com a proposta de comercializar peças ligadas a movimentos de esquerda, às questões feministas, raciais e LGBTQIAP+. As camisas estampam dizeres como “Só o SUS (Sistema Único de Saúde) salva”; “Fogo nos racistas”; “Lula Já” (em referência ao pré-candidato à presidência pelo Partido dos Trabalhadores) e “Capitalismo é o fim”.

Essa ideia segue na loja “Veste Esquerda”, como a nomenclatura sugere. Em sua plataforma, a marca se define como “estamparia da resistência”, que oferece “alternativas de expressão, ideais e cultura que possibilitem tornar esse mundo alegre e colorido em busca da igualdade e da justiça social”. Nas camisetas, malhas de algodão recebem a técnica da serigrafia para imprimir mensagens como: “O SUS salva vidas, #EleNão” (em referência ao Sistema Único de Saúde e à crítica ao presidente Jair Bolsonaro, do Partido Liberal); “Não se pode falar em educação sem amor” (frase do educador Paulo Freire); e frases do candidato Lula com seu rosto estampado.

Na loja “Camisetas opressoras”, há as descrições: “Somos cristãos”; “Somos conservadores”; “Capitalistas conscientes”; “Acreditamos na liberdade”. A marca comercializa camisetas e bonés ligados aos movimentos de direita. Na plataforma virtual, é possível encontrar a coleção de camisetas "Pró-armas", com a defesa do porte de armas por meio de estampas com instrumentos bélicos e os dizeres “Um povo armado jamais será escravizado”. Há, também, camisas com as cores da bandeira que estampam a frase “Meu Partido é o Brasil” e peças com rostos do presidente Jair Bolsonaro (PL), também pré-candidato às eleições de 2022.

Na loja virtual “Vista Direita”, a seção “temas” está subdividida em: "Armas"; "Frases"; "Patriotismo"; "Pró Vida"; e "Socialismo/Comunismo" (com críticas às ideologias). Na camiseta “Hino Nacional”, há as cores da bandeira e a representação do próprio símbolo nacional sobre o tecido preto, com a frase “Verás que um filho teu não foge à luta”.

Em outras plataformas de comércio eletrônico, como Mercado Livre e Elo7, há camisetas com referências aos pré-candidatos à presidência Ciro Gomes (PDT) e João Dória (PSDB), oferecidas em menor quantidade. Estampas com rostos dos políticos Guilherme Boulos (Psol), Fernando Haddad (PT) e Sérgio Moro (União Brasil) também foram encontradas. O curioso é que Boulos, candidato à presidência em 2018, cogitou o governo de São Paulo em 2022, mas foi confirmado como pré-candidato a deputado federal. No caso de Haddad, o político disputará o cargo de governador de São Paulo. Já Moro era pré-candidato pelo partido Podemos, mas mudou de sigla e afirmou que pode desistir de disputar algum cargo nas eleições de 2022. Referências a outros candidatos não foram observadas pelo Vida&Arte.

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Alinne Moraes publicou fotografia com boné do MST em seu Instagram. Postagem foi excluída pela autora após polêmica no Twitter
Alinne Moraes publicou fotografia com boné do MST em seu Instagram. Postagem foi excluída pela autora após polêmica no Twitter

Instrumento de narrativas

Com o boné do Movimento Sem Terra (MST), a atriz Alinne Moraes posou para uma fotografia recentemente. O registro foi compartilhado em seu perfil na mídia social Instagram em março deste ano. A publicação acabou gerando um debate em outra mídia social, o Twitter, sobre como o acessório passou a ser usado por pessoas que não integram o movimento, servindo como adereço para ir a festas, por exemplo. Já outras reações discordaram, afirmando que a aquisição desses acessórios ajuda na sobrevivência do próprio movimento. A peça é comercializada na plataforma Armazém do Campo.

"Qual o problema de gerar renda para um movimento?", questiona Iara Vidal, jornalista e pesquisadora da fusão entre moda e política. "É uma discussão boba, porque a moda não é uma pauta moral". Para Iara, a problemática está no "esvaziamento" de certas pautas. Em seus estudos, a comunicadora levanta sobre como a "moda é a filha predileta do capitalismo". Ela cita que isso vem desde o escravagismo do povo preto e do colonialismo para a dominação de terras, associando principalmente à produção de algodão. "Foi a mola propulsora do primeiro giro da revolução industrial, quando a indústria têxtil passou do tear manual para o tear mecânico. Não é por acaso que Marx e Engels se debruçaram sobre a indústria têxtil para compreender a dinâmica do capitalismo".

"A moda tem atributos específicos que a transformam num caleidoscópio e numa plataforma de protestos", diz Iara. A jornalista também ressalta o olhar crítico sobre a questão. "Che Guevara, por exemplo, foi um revolucionário marxista, um dos protagonistas da revolução cubana. Hoje, a gente vê o rosto dele estampado como um ícone pop, assim como a Frida Kahlo (artista mexicana). Você acaba transformando uma camiseta de protesto em um produto, um nicho de mercado". Iara também pondera: "Tem algumas subversões nessa lógica capitalista, como o boné do MST, que acabou se transformando num item fashion. É uma plataforma genuína, agora a gente não pode imaginar que uma camiseta vá mudar o mundo".

Brasiliense, Iara conta sobre como o debate político por meio do vestir movimenta a capital federal, com pessoas utilizando blusas de candidatos ou com cores que acabaram representando certo espectro de sua ideologia. "Acabou virando uma narrativa. A roupa que você veste é um instrumento de narrativa política, sobretudo quando é camiseta. Isso sempre existiu, como nos movimentos punk, por exemplo. Ficou mais evidente, porque expressa o tempo de polarização política que a gente tem vivido no nosso país".

A atriz Mariana Ximenes no Festival do Rio em 2019, com vestido estampado com cartaz de filmes nacionais, logo depois da Agência Nacional do Cinema (Ancine) retirar cartazes de sua sede e de sua plataforma virtual
A atriz Mariana Ximenes no Festival do Rio em 2019, com vestido estampado com cartaz de filmes nacionais, logo depois da Agência Nacional do Cinema (Ancine) retirar cartazes de sua sede e de sua plataforma virtual

Moda e ativismo

Renata Santiago destaca o contexto hipermoderno e híbrido, também regido pela lógica da moda. "Cada um, obviamente com seus privilégios, e isso também é política, tem acesso às mesmas informações, imagens, repetições miméticas de códigos partilhados na sociedade". A WGSN, um dos meios relevantes de pesquisa de tendência no mundo, propaga a macrotendência "Empower Up". Quem recorda é Renata. "Essa macrotendência começou em 2020, mas estava sendo pensada para ser lançada agora em 2022. É a ideia de pensar o ativismo, de pensar o design como uma forma ativa de desenhar emoções, tentar elaborar uma pluralidade emocional nesses tempos pós-pandêmicos, mas ainda assim de incertezas".

A pesquisadora considera: "As marcas de moda, os estilistas, têm uma força de expressão micropolítica de transformação social. Se somos construtores de imagem, somos também construtores de sociedade. Há, sim, esse movimento cada vez mais forte de uma veia de protesto por meio do vestir. Sendo partidário ou não, a gente está num momento de expressão dessa voz. As marcas têm que se posicionar, principalmente neste momento de luta de democracia, liberdade, direitos básicos. A moda tem que se apoderar disso e colocar essas peças políticas como itens fashion, trabalhadas de uma forma bacana, com design, com sustentabilidade, mas que propague sim representatividade e que faça com que as pessoas se identifiquem com causas. Quando Cazuza fala que a gente precisa de uma ideologia para viver, é isso. Estamos carentes de narrativas relevantes, que toquem em questões de crenças espirituais, de relevância social. A moda precisa se colocar nesse lugar de expressão política, mas também que não seja algo vazio, superficial, mas algo que promova rupturas".

A apropriação pelo marketing político

Publicitário e professor de marketing político da Universidade de Fortaleza (Unifor), também ligado ao curso de Design de Moda da instituição, Carlos Eduardo Bittencourt Paiva relaciona a apropriação de cores por determinados grupos políticos. "Tem muito claramente uma divisão. De um lado, cores que representariam a nacionalidade (verde e amarelo). A seleção brasileira de futebol está perdendo o significado da pátria de chuteiras, espécie de representação máxima da nossa dita brasilidade envolvendo o futebol, e o futebol como espaço 'democrático' em que pessoas menos favorecidas poderiam ascender. Politicamente, o ato de vestir uma camisa da seleção e utilizar cores verde e amarelo são símbolos dessa corrente. É curioso quando a gente vê um representante. O Luciano Hang, das lojas Havan, se veste como se fosse o Zé Carioca (personagem fictício da Disney), que seria, de certa forma, uma representação dessa brasilidade, vista por um norte-americano. É curioso, porque não é uma figura com papel político forte. Por outro lado, a gente tem partidos de esquerda que se apropriam principalmente da cor vermelha, para representar o oposto a essa brasilidade importada", analisa.

Segundo o professor, o marketing político reforçará isso em 2022. "Próximo da eleição, eu não poderia, por exemplo, ir votar utilizando marcas de candidatos, mas uma vez que essas cores representam candidatos, tem-se a liberdade de transitar em qualquer espaço eleitoral dizendo em quem se acredita".

Bittencourt acrescenta: "A gente viu a utilização de estampas em 2018, porque começou ali, de grupos de empresários que tinham marcas que utilizaram a perspectiva da moda em seus produtos expostos em vitrines, até como recurso para burlar a legislação eleitoral que proíbe a distribuição de brindes. Mas quando se tornou exemplo de manifestação espontânea, foi permitido naquele momento, a gente viu um grupo maior de empresas do segmento da moda favorecendo o candidato que representava um rompimento com a 'corrupção', ideia de liberdade, tinha um clima festivo, coreografias".

O professor ressalta: "Em 2018, o vermelho se tornou 'menos fashion', vamos dizer assim, porque havia a associação à corrupção. Neste momento, vai ter muita limitação nas campanhas. A legislação vai procurar coibir, mas a gente vai ver, sim, as ruas servindo manifestações de apoio a candidatos ou identificação de determinada classe com certo pensamento ideológico. Frases com manifestações também voltam mostrando força. Se utiliza para deixar claro quem se é. A moda é, em essência, uma segunda pele. É curioso porque eu escolho me manifestar, então ela me protege e me expõe. É muito associada à linguagem não verbal. Se ela traz uma carga visual retrátil de um candidato como objeto de moda, passa a se tornar um signo político, que vai representar uma corrente ideológica. Acredito que a legislação eleitoral, que os tribunais, devem ficar atentos a esse tipo de coisa. Se a gente pensar que grupos econômicos podem ter acesso de maneira mais fácil (a essas estratégias) é complicado, ao mesmo tempo, quando penso a utilização de uma forma mais sutil, mas ainda sim vai ter uma carga semântica grande em cima disso. Acho que a gente vai ver uma disputa silenciosa".

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