Logo O POVO+
A importância dos terreiros religiosos para as comunidades de Fortaleza
Vida & Arte

A importância dos terreiros religiosos para as comunidades de Fortaleza

Pais e Mães de Santo, Babalorixás e Ialorixás são zeladores espirituais de terreiros e exercem importantes atividades de acolhimento e respeito em bairros de Fortaleza
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Pai Iran, pai de santo que mora no bairro Bom Jardim
 (Foto: Aurelio Alves)
Foto: Aurelio Alves Pai Iran, pai de santo que mora no bairro Bom Jardim

Umbandas, candomblés, batuques, jurema, catimbós, encantaria, terecôs, omolocôs: senhor da sabedoria, Ifá ensina que Exu nasceu antes que a própria mãe, precede toda e qualquer criação. Quando os conhecimentos ancestrais negros atravessaram o Atlântico, bordados nas peles dos povos escravizados, a fé se reinventou como possibilidade de vida ante a miséria da colonização branca. Nos terreiros de umbanda, com seus Pais e Mães de Santo; e nos de candomblé, com Babalorixás e Ialorixás, Exu abre caminhos para que toda casa seja encruzilhada de saberes coletivos.

Nas religiões de matrizes africanas, os dirigentes dos terreiros são zeladores espirituais dos territórios sagrados e atuam numa primordial função: a relação dos espaços de fé com seus bairros e comunidades. Desde 2014 à frente da Tenda Espiritualista Mãe Tutu, Mãe Telma construiu laços de cuidado e solidariedade no bairro Luciano Cavalcante. "A nossa relação com a comunidade do entorno sempre foi de muito respeito. Eles sempre nos receberam de braços abertos e conseguimos construir uma relação de amizade. Como gratidão, montamos o Projeto Nosso Alimento, onde distribuímos mensalmente 40 cestas para as famílias da comunidade. Antes da pandemia, essas entregas eram realizadas na Tenda, junto com sopão e palestras sobre os mais variados assuntos, sempre buscando estreitar esses laços. Outro momento de grande importância para nós é a festa das crianças, realizada em homenagem aos Ibêjis e a São Cosme e Damião. Nessa data, o quintal do nosso terreiro fica todo colorido, recebendo uma festa para comemorar a vida das crianças, com jogos, brincadeiras, palhaços, comida e muitos doces", enumera.

"Terreiros são feitos para as comunidades, porque somos umbandistas dentro e fora das casas de santo. O que aprendemos com nossos guias e com nossos orixás deve ser praticado na vida em todos os âmbitos. Construir uma relação entre terreiros e territórios é de extrema importância para que as pessoas conheçam, aprendam, vivenciem, percebam que nossa religião, antes de mais nada, prega amor, justiça, igualdade e luta social, para que as pessoas saibam onde encontrar terreiros, para que elas saibam que nós existimos e resistimos, pra que elas saibam que existe diversidade religiosa, para que elas tenham acesso a outras formas de viver a espiritualidade, para que elas tenham a oportunidade de quebrar preconceitos e tabus que são frutos do racismo religioso", defende Mãe Telma.

Mulher negra periférica, Telma conquistou respeito em todos os espaços que constitui por meio de árduo trabalho. "A minha relação com a Umbanda nasceu após um momento muito difícil que eu passei em minha vida... Eu tinha duas filhas pequenas, estava desempregada e sem amparo, até já sem móveis em casa, que precisei vender para pagar contas e comprar comida. Em uma noite, minha filha mais nova, que delirava de febre, chamava pelo nome de Tutu e aí eu vi, pela primeira vez, uma velha negra em minha frente. Depois disso, busquei auxílio em um centro espírita e fui conversar com uma amiga, que me esclareceu que Mãe Tutu tratava-se de uma preta velha. Através dela, eu conheci uma casa de Umbanda onde Mãe Tutu trabalhava e abracei a religião. Com toda honestidade, jamais almejei ser mãe de santo. Porém, mal eu sabia que esse caminho já estava escrito. Foi através de sonhos e de orientação da espiritualidade que fui chamada para o trabalho mediúnico. Em 2014, nasceu a Tenda Espiritualista Mãe Tutu". Além do terreiro, Mãe Telma também chefia uma sucata. "Ocupei e vou ocupar todos os lugares que eu puder. Não deixarei nenhum lugar desocupado!".

No Grande Bom Jardim, ocupar ruas com fé e receber a todos — sem distinção de raça, gênero ou orientação sexual —sempre guiou Pai Iran do Nego Chico, Pai de Santo na Sociedade Espiritual de Umbanda Caboclo Índio. "O terreiro é um local de acolhimento, a bandeira da umbanda é que somos todos iguais. Nós respeitamos a diversidade, a natureza. Por esse motivo, a gente desenvolve um trabalho agregador, de atendimento, de consulta, de informação. O nosso trabalho é acolher", compartilha.

Ao número 1153 da Rua André Soares, no Jardim Jatobá, o terreiro de Pai Iran desenvolveu um trabalho de formação com grupos de adolescentes e jovens sobre prevenção às infecções sexualmente transmissíveis ainda em 2005. O respeito aos direitos das mulheres e o combate à homofobia também são diretrizes da casa espiritual. "Tenho muitos amigos umbandistas que já vivenciaram situações difíceis, violências verbais, racismo religioso. Mas, na minha rua, nossa relação é muito respeito e parceria: observamos os horários das festas e giras, conversamos com a vizinhança", relata.

Um dos primeiros moradores da rua, Pai Iran integra a historiografia do bairro. "Conheci a umbanda aos sete anos, meu pai também era praticante. Em 1999, eu fui coroado com o cargo de Pai de Santo e ano seguinte eu abri minha casa. Há 22 anos, venho tocando esse trabalho espiritual", narra. O Pai de Santo de Iran Firmino, conhecido como Antônio Louro no Grande Bom Jardim, era querido por seu engajamento na cultura local: tocava blocos de carnavais, dançava nas quadrilhas juninas… Hoje, o desejo do discípulo é tornar a Sociedade Espiritual de Umbanda Caboclo Índio uma referência nas artes. O zelador espiritual participa ainda da Associação Espírita de Umbanda São Miguel, entidade que se destaca pela atuação social comprometida.

Nas religiões de matrizes africanas, a pedagogia das encruzilhadas ensina que ninguém anda só — fé, afinal, é compreender que "tudo que sabemos, sabemos entre todos e para todos". Na mitologia iorubá, uma das maiores etnias do continente africano em termos populacionais, um antigo ditado sentencia que “Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”. Fé também é reinventar o passado e plantar desejo no amanhã.

"A função do terreiro enquanto território é preservar a cultura"

No último mês de março, o Ceará ganhou uma importante coletânea de dados e informações sobre os povos tradicionais, templos e raízes da cultura de matrizes africanas e afro-brasileiras no Estado realizado pela Associação Afrobrasileira de cultura Alagba. O projeto, apoiado pela Secretaria do Desenvolvimento Agrário (SDA) do Governo do Ceará, originou o livro "IWÉ - Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará".

Com amplo trabalho desenvolvido nas 14 macrorregiões, o projeto reuniu quase 500 entrevistas e cartografou o cenário no Ceará. Coordenador de campo da pesquisa, o arte educador Ogan Leno Farias ressalta que o trabalho é uma busca incessante para sair da invisibilidade nas políticas públicas. O resultado está disponível no site associacaoalagba.com.

O POVO: Sua mãe, grande referência na umbanda, foi a primeira Mãe de Santo brasileira a receber o título de Tesouro Vivo da Cultura. Como nasceu sua aproximação com o candomblé? Qual espaço você integra hoje?
Leno Farias: O candomblé é remanescente de matrizes africanas que chegaram ao Brasil. Essa palavra "candomblé" é de origem banto, um dos vários idiomas banto que se falam e acabou denominando o que nós chamamos de comunidades tradicionais, os terreiros de candomblé no Brasil. Eu sou de comunidade tradicional desde que nasci, porque a minha família já está na sexta geração de terreiro. Eu me aproximei do candomblé porque visitei um terreiro e achei muito interessante, me tocou, eu vi que aquilo ali era um uma religação com as minhas raízes africanas e eu resolvi me reconduzir a essas comunidades. Como eu já era de terreiro, foi mais fácil a aproximação porque há um reconhecimento de pertencimento. A minha casa de candomblé fica em Salvador, na Bahia, e se chama Ilê Axé Omindá. Na minha comunidade tradicional, sou Ogan e minha função é cantar e tocar para os ancestrais e antepassados. Sou militante do movimento com esse recorte de expressões culturais afro-brasileiras e povo de terreiro desde 1994.

OP: Como se estabelece a relação dos terreiros e casas espirituais com seus bairros e comunidades?
Leno: Existem duas perspectivas: a primeira é a perspectiva de território; e a segunda, é de territorialidade. Essa territorialidade também pode ser entendida por território ancestral. A questão do território é o terreiro em seu espaço físico, de construção, de identidade, de preservação ancestral. Por isso, a comunidade tradicional de matrizes africanas é uma comunidade que mantém a tradição de séculos. No caso do terreiro da minha esposa e do terreiro da minha família, que é o Ilê Axé Omindá, nós somos do povo iorubá, então mantemos a cultura desses povos preservadas no canto, na dança, na música como um todo, na estética de roupas indumentárias e adereços, na questão da culinária e nas demais práticas culturais — como rezar. A gente diz muito que a gente tem comida própria, roupa própria, vestimenta própria, idioma próprio e, além disso tudo, ainda reza. A função do terreiro enquanto território é essa, preservar essa cultura, não deixar ela se acabar. A questão da territorialidade abrange o espaço no entorno do terreiro, cerca de 5 km. O terreiro dialoga com as necessidades do seu entorno, proporciona segurança e seguridade alimentar; proporciona saúde a partir de uma visão pautada na tradição desses povos; dialoga com as necessidades de entendimento sobre a proteção social a partir de acolhimentos — o terreiro acolhe mulheres trans e cis, por exemplo, acolhe as demandas da comunidade em relação a diálogos com o governo. Há terreiros que fomentam ações de cidadania como atendimento psicológico, atendimento de assistência social e advogados... O terreiro é considerado um espaço de museu vivo. Em relação ao espaço ancestral, ele está associado à cosmovisão. Existem espaços periurbanos, rurais e na urbe que são considerados sacros para essas comunidades. Um exemplo é a jaqueira na Lagoa da Maraponga, onde é reverenciado um ancestral africano; outro é o baobá do Passeio Público. Lagoas, rios e cachoeiras não estão nos terreiros, mas integram nosso território ancestral. Essa questão da territorialidade perpassa por essa construção de identidade.

OP: O que mais se destacou no processo de mapear terreiros e casa espirituais em todo o Estado para a elaboração do inventário dos povos e comunidades tradicionais de matrizes africanas?
Leno: O processo de construção desse inventário foi árduo. Desde 2012, estamos na peleja, tentando conseguir fazer essa pesquisa.... A princípio, seria um mapeamento de Fortaleza e Região Metropolitana, mas depois de um diálogo que tivemos com o governador Camilo Santana em 2018, conseguimos fazer um edital a partir da Secretaria do Desenvolvimento Agrário (SDA). Precisávamos, há muito tempo, de um diagnóstico sociocultural e econômico dessas comunidades para que a gente pudesse construir políticas públicas de reparação. A partir desse edital, nós conseguimos visitar as 14 macrorregiões em 57 municípios. Em todos esses municípios, nós aplicamos questionários nessas comunidades e identificamos necessidades: a questão hídrica, a produção agrária familiar, a segurança alimentar, a cultura e a segurança pública. A gente perpassou por um processo complicado de racismo religioso e esse racismo proporciona agressões físicas, agressões aos territórios. Nós encontramos terreiros que não tinham água potável; comunidades que produziam agricultura, mas não tinha como fomentar esse trabalho; comunidades que estavam sendo atacadas… Mas também encontramos comunidades que estavam construindo políticas afirmativas em seu entorno, proporcionando cultura, educação, inserção no mercado de trabalho. Nós construímos política pública e isso foi muito importante e prazeroso. Não deu para mapear todos os terrenos do Ceará, mas nós pegamos 494 comunidades num montante de 528 visitas nas 14 macrorregiões.

OP: Como o inventário pode contribuir para a criação e execução de políticas públicas para os povos de terreiro?
Leno: O que falta agora é a sensibilidade do governo em executar essas políticas. Isso vai chegar nas secretarias e esperamos que, a partir desse diagnóstico, possamos constituir e construir junto com o governo, e com os que virão, políticas afirmativas de reparação, políticas públicas para povos e comunidades tradicionais de terreiro.

Podcast Vida&Arte
O podcast Vida&Arte é destinado a falar sobre temas de cultura. O conteúdo está disponível nas plataformas Spotify, Deezer, iTunes, Google Podcasts e Spreaker. Confira o podcast clicando aqui

O que você achou desse conteúdo?