Chega no aeroporto de Recife e, em seguida, parte para mais uma longa jornada de carro. São cerca de duas horas até o limite com Alagoas, onde se localiza o município de Água Preta. O lugarejo simples, de 6 mil habitantes, com aquele ar de interior bem nordestino, tem em sua história uma usina de álcool e açúcar que deu muitos empregos e fez nascer em seu entorno a cidade. A Usina Santa Terezinha foi uma das maiores produtoras do Brasil nos anos 1950, até ser tomada pelo governo militar.
No fim da ditadura, a empresa fundada por José Pessoa de Queiroz foi devolvida afundada em dívidas e se transformou num trauma familiar. Em 2015, depois de décadas abandonada, ela voltou à ativa como um espaço de dar e receber cultura, de troca de experiências, de reflexões, música, natureza e muitas, muitas obras. A Usina de Arte é um imenso museu a céu aberto, com mais de 40 obras de artistas internacionais, espalhadas por 33 hectares de verde, lagos, rio e montanhas.
O espaço, de visitação gratuita, é cuidado por Bruna e Ricardo Pessoa de Queiroz, ele neto do fundador e ex-funcionário da antiga usina. Sem portões ou catracas, o passeio pelo Parque Artístico Botânico vai surpreendendo com obras de diferentes tamanhos que despertam diferentes olhares. Vai desde um labirinto de poucas paredes cobertas de plantas, que acaba se confundindo com a própria paisagem, a um imenso sapato preso entre grades. Ou ainda a reprodução da sala da casa principal, feita para diminuir a curiosidade de quem queria saber como viviam os donos daquele terreno. Tem ainda uma suntuosa mesa posta, com talheres e espelhos, servindo uma refeição de pedras. E a visão segue até encontrar “Diva”, uma imensa vagina, com 16 metros de largura, encravada na montanha a 33 metros de altura. Obra da artista pernambucana Juliana Notari. A curadoria do espaço é feita pelo francês Marc Pottier, referência internacional nas artes em espaço público.
No início deste mês de abril, mais duas obras foram instaladas na Usina de Arte. “Paisagem”, da gaúcha Regina Silveira, é um labirinto feito com paredes de vidro transparente com perfurações – sempre na altura de 1,4 metro – simulando tiros, representando tantas prisões e violências contemporâneas. Já “Um campo da Fome”, do mineiro Matheus Rocha Pitta, é um banquete com milhares de frutas e legumes de cerâmica, dispostos em 30 canteiros cercados para que o flagelo da fome não escape.
Além do Parque Artístico Botânico, a Usina cuida de uma escola de música e de um fablab (espaço multifuncional para troca de ideias e desenvolvimento de projetos), uma biblioteca, promove um festival multicultural – com atrações locais e nacionais – e desenvolve projetos de botânica, saraus artísticos e atividades pedagógicas. Com a reabertura do espaço, Água Preta também voltou a abrir pousadas, restaurantes e atividades turísticas. A velha usina segue de pé, imponente, mantendo viva uma história e dando boas vindas a quem chega ao Parque Artístico Botânico. E lá no topo, numa parte mais alta, nasceu uma árvore que, apesar dos anos de abandono do prédio, tornou-se frondosa. Uma mostra de como a vida e arte vivem e resistem.
O O POVO visitou a convite da Usina de Arte
Bate-pronto com Bruna Pessoa de Queiroz, presidente da Usina de Arte
O POVO – Como começou a sua relação com a arte? Foi pelas artes plásticas?
Bruna Queiroz – Como todos as coisas que nos atravessam desde criança, é difícil explicar. Mas lembro dessa minha infância permeada por uma enorme diversidade cultural. Muita música, literatura, cinema, teatro, artes plásticas. Devo muito desse acesso à minha avó e a minha mãe que sempre me levaram para todos os espaços de celebração e fazer cultural. Acho que naturalmente a curiosidade e o interesse foram crescendo junto comigo e dessa forma, diversa, sem ter um tipo de arte favorita, mas atenta aos frutos que esse contato artístico pode gerar.
OP – A curadoria da Usina é feita por Marc Pottier. Queria que você me contasse como chegou ao nome dele e como funciona esse trabalho de escolha das obras que vão ser expostas?
Bruna Queiroz – Já conhecia o Marc pelo seu trabalho desempenhado no segmento artístico, e nos aproximamos durante uma entrevista que ele fazia sobre a Usina de Arte para a revista DasArtes. Não tardou para que nos tornássemos bastante próximos, e ele me convidou para fazer uma fala sobre o projeto para o B&C Club, uma instituição londrina de colecionadores. Encontrei no Marc um olhar estrangeiro muito atento e familiarizado com a arte brasileira e, sem dúvidas, a curadoria dele trará grandes avanços ao projeto. Especialista em arte no espaço público e conhecedor profundo da nossa produção artística, Marc é uma importante soma e intensifica um caminho já trilhado por nós para a promoção das identidades étnicas e estéticas do repertório cultural do nosso País. A escolha dos artistas, e eventualmente das obras, passa por um processo de profunda pesquisa e debate por parte do conselho curatorial liderado pelo Marc Pottier, com prioridade ao processo de residência artística e projetos que nascem da troca entre o artista e a nossa comunidade.
OP - A obra “Diva” acabou chamando muita atenção do público, por diferentes motivos. Passado o tempo desde a polêmica, como você avalia a repercussão que se criou em torno desse trabalho?
Bruna Queiroz – No primeiro momento, as reações foram muito agressivas e em grande maioria, direcionadas à artista, Juliana Notari. Eram ameaças rasas, toscas! Foi assustador, nós não esperávamos essa reação truculenta. Com o tempo, o debate em torno da obra foi ganhando dignidade e qualidade. E no fim, toda essa violência direcionada à artista corrobora com o que a obra denuncia. A repercussão contribuiu para ampliar a visibilidade sobre o que fazemos aqui na Usina de Arte e também a trajetória artística de Juliana, sempre ligada ao corpo e ao feminino. Recentemente ela esteve no parlamento europeu falando sobre arte e política, um grande orgulho para todo o trabalho artístico desenvolvido em nosso Estado.
OP – A Usina fica num município pequeno, onde existe uma forte presença da religião evangélica. De que forma vocês dialogam com essa comunidade que, eventualmente, pode se opor ao que é proposto pelas obras?
Bruna Queiroz – Como muitas das nossas obras são pensadas aqui, a comunidade conhece o artista, acompanha suas pesquisas, faz parte delas! Questiona, opina e participa efetivamente do processo. Sempre pedimos que o artista fale um pouco da sua história, das suas ideias para a população da vila. Essa inclusão no processo gera um protagonismo, um pertencimento. No fim, você pode até não gostar do que vê, mas entende o que motivou aquela obra. É importantíssimo estimular esse debate com todos os públicos, a arte é capaz de sensibilizar qualquer pessoa. Sabia que existem vários clipes de cantores evangélicos gravados no nosso Parque? Acho que estamos no caminho certo nessa construção coletiva.
OP – A arte tem por princípio ser questionadora e transformadora. Você já percebe que a Usina trouxe mudanças para a comunidade de Água Preta? Se sim, de que formas?
Bruna Queiroz – Lá em 2017, na 3º edição do Festival Arte na Usina, que realizamos anualmente, o tema do era justamente esse: resistência e transformação como pilares e propósitos da arte. Acredito que uma grande particularidade do nosso projeto é ter na máxima “a arte transforma” mais que um jargão, mas uma possibilidade real de mudança de vida e cenários. A Usina não é só museu, mas uma instituição parceira da sociedade, que cria estruturas para geração de renda e valor para os 6 mil moradores do entorno. Ao iniciarmos a Usina de Arte, tínhamos em mente que era preciso sair de um modelo centralizador, no qual a Usina provia o sustento de todas as famílias, e partir para uma ideia em que cada um desenvolvesse a sua própria usina de acordo com as suas habilidades. E essa guinada não seria possível sem o intenso envolvimento da comunidade, parte efetiva de todo o processo. A partir da demanda turística provocada pela Usina Arte, a região viu nascer um total de dez restaurantes, pousada, pesque-e-pague, centro de artesanato, guias para passeios ecoturísticos, camping e a cultura de hospedagens domiciliares.
OP – Além das exposições, a Usina tem uma série de trabalhos na área de educação. Queria que você me falasse dos projetos vocês desenvolvem.
Bruna Queiroz – Além de estruturas que abrimos gratuitamente à população como escola de música, biblioteca e centro de conhecimento público com FabLab, impressoras em 3D e cortadora a laser, temos um trabalho muito próximo com as 5 unidades escolares presentes na vila. Essa parceria possibilita o apoio de novas práticas pedagógicas no ambiente escolar, realização de oficinas formativas ao longo do ano, festivais de cinema voltado para estudantes, além do estímulo do uso do Parque Artístico-Botânico para aulas in loco, onde é possível aprender na prática história, biologia, geografia, física. Também acabamos de implementar um polo de confecção têxtil, onde se aprende Corte e Costura, e a partir dessa formação com a elevada demanda por mão de obra nesse segmento, o aluno já pode já pode atender às fábrica de Santa Cruz do Capibaribe. Estamos implementando ainda nesse semestre uma escola de programação e outra de inglês, para que os futuros programadores já possam atender ao mercado norte-americano.
OP – Quais os planos que vocês têm para o futuro da Usina?
Bruna Queiroz – Espero que ela siga nesse caminhado trilhado pelos pilares da inclusão, participação e modificação da realidade social e econômica. Esperamos cada vez mais colher esses frutos que temos semeado ao longo desses sete anos, buscando que cada um que mora no entorno da Usina de Arte possa sonhar mais alto, acreditar e realizar seus quereres. A Usina de Arte sempre estará à disposição dessa comunidade para contribuir com as ferramentas necessárias para que esses sonhos se tornem reais.
OP – A história da Usina se confunde com a história da sua família e hoje você tem três filhos pequenos. Como você espera que essa relação com a arte impacte a vida deles e de outras crianças da comunidade onde está a Usina?
Bruna Queiroz – Voltamos a frequentar a Usina quando nasceu meu primogênito, Arthur, há 10 anos, e eu já tinha esse desejo de querer de criá-los “no mato”, nessa vida mais rural que a gente não tem acesso nas metrópoles. O projeto Usina de Arte veio de encher esse meu plano com coisas que eu nem sonhava. Meus filhos crescem hoje imersos nesse ambiente de arte, cultura, educação, inclusão social, preservação ambiental, impactando muito positivamente na vida deles e na minha também. Já vejo que há amor nos olhos deles pelo o que foi construído. Esse impacto e essa vibração se desdobra em toda a comunidade. Vimos a qualidade escolar subir, com avanços nas notas do Ideb, o brilho no olhar das crianças, um interesse pulsante pelas coisas, o respeito pelo meio ambiente, fruto de todo o trabalho desenvolvido no distrito. Sou muito orgulhosa do que alcançamos até aqui, mas consciente de que é só o começo!
Obras do Parque Artístico Botânico da Usina De Arte
- Tempo, Templo
Artista: Bené Fonteles (BH)
- Brasil 2017
Artista: Paulo Bruscky (PE)
- Mobiliários Artísticos
Obras Diversas – Bancos, Brinquedos...
Artista: Hugo França (SP)
- Árvore Geometrizada
Artista: Hugo França
- Hangar José Rufino (Exposição permanente do artista. Obras Diversas)
Artista: José Rufino (SP)
- Tempus Fluvium
Artista: José Rufino
- Tinha Que Acontecer, Cabeça De Bandeirante
Artista: Flávio Cerqueira (SP)
- Eremitério Tropical
Artista: Márcio Almeida (PE)
- Cabanos Em Matas De Água Preta
Artista: Liliane Dardot (BH)
- Tiummmmtichamm
Artista: José Spaniol (SP)
- Átrio
Artista: Marcelo Silveira (PE)
- Data Venia
Artista: Ricardo Pessôa De Queiroz (PE)
- Rádio Catimbó
Artista: Paulo Meira (PE)
- Arena
Artista: Vanderley Lopes (SP)
- Casa Imaginária
Artista: Ricardo Pessôa De Queiroz (PE)
- Unclassified
Artista: Frida Baranek Liboa (RJ)
- Diva
Artista: Juliana Notari (PE)
- Your Eyes
Artista: Artur Lescher (SP)
- Fotini
Artista: Saint Clair Cemin (NY)
- Esculturas Sem Título
Da Série Natureza Inventada
Artista: Carlos Vergara (RJ)
- A Sorte Está Lançada Ii
Artista: Ricardo Pessôa De Queiroz (PE)
- Faixa De Gaza
Artista: Georgia Kyriakakis (SP)
- Sem Título
Artista: Iole De Freitas (RJ)
- Três Andaimes Para Um Retrato
Artista: Julio Vilani (Paris/ SP)
- Renascer
Artista: Ronaldo Tavares (PE)
- Mobiliários Artísticos
Obras Diversas (bancos, esculturas, etc)
Artista: Seu Bau (Seu Bau acompanhou o trabalho de Hugo França desde sua primeira visita ao espaço)
- Banquete Da Terra
Artista: Denise Milan (SP)
- Um Campo Da Fome
Artista: Matheus Rocha Pitta (MG/ Berlim)
- Jardim Frágil (Em fase de projeto)
Artista: Carlos Garaicoa (Madrid)
- Father
Artista: Saint Clair Cemin
Anfiteatro Botânico (em fase de projeto)
Artista: Thiago Rocha Pitta
- Paisagem
Artista: Regina Silveira (RS)
Usina de Arte
Onde: Água Preta, Pernambuco (Rodovia PE 99, Km 10. A 140km de Recife)
Entrada gratuita
Quando: visitação de domingo a domingo, das 5h30min às 18 horas
Mais informações: www.usinadearte.org e no Instagram @usinadearte
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