"As velas do Mucuripe/ Vão sair para pescar/ Vou mandar as minhas mágoas/ Pras águas fundas do mar". Quem conhece a paisagem detalhada na canção "Mucuripe" sabe que a descrição remete a uma das principais áreas litorâneas de Fortaleza. Próximo ao cais do porto dá para vislumbrar várias jangadas, meio de transporte de mercadorias e mensagens. Os versos, que viriam a ser gravados também por Elis Regina e Roberto Carlos, começaram a ser escritos por Antônio Carlos Belchior num guardanapo em uma das mesas do Anísio, bar das redondezas que se tornou local de encontro entre músicos e boêmios cearenses por volta dos anos 1970.
A letra retrata o movimento contínuo da praia entre as primeiras horas da manhã e o fim da tarde, sendo finalizada em parceria com o cantor Fagner e se tornando uma das principais faixas do repertório do músico e compositor Belchior. Assim como em demais canções, o artista cearense narra os pormenores da vida e traça uma ligação entre a arte e as paisagens. "O contato com todos esses ambientes do Ceará formaram a identidade do sujeito Belchior e muitos deles aparecem mencionados em sua obra cancional", destaca a pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), Josy Teixeira, com doutorado sobre Belchior e pós-doutorado em Análise do Discurso e Música.
Josy menciona "Bela", do disco "Paraíso" (1982), que fala: "Ela/ Sensibilidade de Fortaleza à luz do dia" e "Pequeno Mapa do Tempo" (1980), com o trecho: "Eu tenho medo/ (Estrela do Norte, paixão! Morte é certeza!)/ Medo-Fortaleza, Medo-Ceará". As palavras remetem a uma vivência de Nordeste que começa no município de Sobral, no Ceará, onde o cantor explorou a infância em banhos no rio Acaraú e nas saídas para as feiras de música. Logo depois, veio o encontro com a Capital pela motivação dos estudos no colégio Liceu do Ceará, no Centro, que desembocou em uma desistência acadêmica para ir ao mosteiro de Guaramiranga, onde ficaria conhecido como frei Francisco Antônio de Sobral.
Na reclusão da serra, era considerado disciplinado e cortês, com facilidade para escrita e notável senso de humor. Demorou anos para concluir que não tinha vocação para a vida religiosa e decidiu retornar para a rotina fortalezense, na qual se dedicou por quatro anos no curso de Medicina na Universidade Federal do Ceará (UFC). Foi neste período em que se aproximou da nova onda da música local ao lado de companheiros como Fausto Nilo e Jorge Mello. O momento deu a certeza que, como entoa em "Como Nossos Pais", não iria voltar para o sertão. "Na maioria das vezes, o Ceará não é citado nominalmente nas letras de Belchior, sendo inferido pelo ouvinte dentro de uma classificação mais genérica, ligadas aos termos "interior", "norte" e "sertão". Seja de forma explícita ou implícita, a relação com o espaço geográfico do Estado é essencial", acrescenta Josy. Desta forma, o compositor fincou a identidade de "rapaz latino-americano", esse "nordestino que migra para a cidade grande". Esta relação, pontua Josy, é vista em versos como o da canção "Baihuno" (1993): "Diz àqueles da província que já me viste a perigo, na cidade grande enfim/ Conta aos amigos doutores que abandonei a escola para cantar em cabaré/ Baiões, bárbaros, baihunos, com a mesma dura ternura que aprendi na estrada e em Che".
Cordial brasileiro
A transição até a vida artística se deu, em grande parte, pela companhia próxima de personalidades como Amelinha, Rodger Rogério e Ednardo, integrantes do movimento conhecido como Pessoal do Ceará. "Esse foi o primeiro cenário de desenvolvimento dele", explica o jornalista Jotabê Medeiros, autor do livro "Belchior: Apenas um Rapaz Latino-Americano", publicado em 2017. "Tinha muita gente do Interior, de Quixeramobim, Orós, Piripiri. Você tinha ali uma amostragem do sertão, ao mesmo tempo muito focado nas referências literárias mais sofisticadas. Eles tinham uma visão muito ampla. Porque, na verdade, naquela época as cidades eram províncias. Eles fizeram da província um lugar universal".
Medeiros explica que a poética de Belchior nunca se distanciou das vivências que começaram ainda na faculdade de Medicina e atravessaram pelas temporadas na Capital, sendo base para sucessos como "Na Hora do Almoço" e "Galos, Noites e Quintais". A expansão deste panorama aconteceu a partir da ida do artista para o Rio de Janeiro, em 1971, e consequentemente para São Paulo, onde gravou discos. "Ele aprofundou outros tipos de linguagens, com as vanguardas concretistas visuais, de artes plásticas", exemplifica.
O jornalista aponta que o trabalho do cearense tem uma grande ligação com os cenários e reforça a letra de "Passeio" (1974) como uma das principais composições sobre a metrópole paulista: "Por entre os carros de São Paulo/ Meu amor, vamos andar e passear/ Vamos sair pela rua da Consolação". O motivo é claro: "Parece que está tudo lá, os lugares, as pessoas, e principalmente as influências", assimila Jotabê. Para ele, o cantor tirava muita força poética de cenários, aparentemente, não tão marcantes. "A música de Belchior é muito cronista, um relato do cotidiano. São canções com apelo universal, que falam da condição humana".
Conheço o meu lugar
O estrelato nacional chegou com o álbum "Alucinação" (1976) e permaneceu durante a trajetória que rendeu mais de 18 títulos, sendo 12 LPs e seis CDs. Entretanto, em 2008, o artista saiu de cena para viver em autoexílio. O destino foi incerto. Meses depois, turistas o viram no Uruguai, onde concedeu entrevista para a TV Globo: "Vou lançar um disco com canções novas e tenho certeza que vai ser a continuidade do amor que o povo do Brasil sabe que eu tenho por ele", disse na reportagem de 2009. O desejo, todavia, nunca aconteceu. O compositor faleceu no anonimato em 2017, na cidade de Santa Cruz do Sul, em decorrência de causas naturais.
Esses dez anos de afastamento motivaram os jornalistas Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti a produzirem o livro "Viver É Melhor Que Sonhar: Os Últimos Caminhos de Belchior" (2021), um "road book" construído na revisitação dos passos do artista, entre Nordeste, Sudeste e Sul. "O livro resgata a história desde que ele nasceu, mas com esse foco que todo mundo tem: por que ele fez isso?", explica Chris. Nas entrevistas, os escritores descobriram de tudo um pouco. "A gente ouviu de tudo. Era unânime que Belchior era um cara muito gentil, interessante, engraçado, mas a gente também ouviu que ele tinha mágoas, porque as pessoas tinham expectativas diferentes".
Esse movimento transitório, de reclusão, sempre foi presente na vida do cearense. Desde a infância, cercada pelos livros, até as partidas inesperadas da adolescência e as renúncias da vida adulta, que culminaram em distanciamento dos filhos, acúmulo de dívidas e polêmica com a imprensa. Após tanta peregrinação ele conseguiu, finalmente, uma rotina tranquila nos últimos anos de vida. As poucas pessoas que sabiam de seu paradeiro cumpriam um acordo velado de silêncio e permitiam que ele vivesse tranquilamente. "Muita gente simplifica esse sumiço dele. O que a gente queria, com o livro, era complexificar para que as pessoas pudessem entender. Nós temos um turbilhão de emoções. Ele canta: 'Eu sou como você'. Ele não é diferente de tanta gente, ele só teve a oportunidade e a coragem", diz Chris. A jornalista considera a obra de Belchior um "divisor de águas" e afirma: "Eu sei que ele se via assim também, por isso ele tinha tanta mágoa com o mercado. A mensagem dele era muito direta".
Anos depois, a música de Belchior ganha um destaque, até então, inédito. As letras e melodias do cearense têm inspirado novos projetos, desdobramentos em outras linguagens artísticas e releituras por músicos de diferentes gerações, a exemplo da cantora Ana Cañas, que lançou disco com composições de Bel. "Acho importante, saudável, necessário. Mas se a gente tivesse isso em 2016, a gente poderia ainda ter visto ele vivo em palco. Porque era isso que ele queria, como diria algumas fontes do meu livro, ele também queria virar 'santo'. E falava sobre esse reconhecimento, não à toa, durante o exílio, ele falava que estava preparando um disco melhor que 'Alucinação'", frisa a escritora.
Belchior e seus precursores
"Muito já se falou sobre a relação entre Belchior e Bob Dylan. O cearense foi muitas vezes considerado como a versão brasileira do músico estadunidense. No mundo hispano-hablante, o cantor, compositor e escritor espanhol Joaquín Sabina também é comparado a Dylan, sendo nomeado o "Bob Dylan em castelhano". É nesse cenário que abordo os diálogos entre Belchior e Joaquín Sabina. Se, em terras brasileiras, o artista sobralense foi comparado ao Prêmio Nobel de Literatura, o estilo de Belchior se aproxima à identidade musical de Sabina.
Um dos primeiros pontos que liga esses artistas da canção de autor ao trabalho de Dylan é a profundidade das obras. Efetivamente, a fineza e sofisticação com que tratam o texto da canção popular faz jus ao trabalho do precursor Bob Dylan. Para que o público brasileiro possa apreender e se aproximar da identidade musical de Sabina, podemos perguntar: seria Belchior o Joaquín Sabina brasileiro?
Sabina, que tem 73 anos, lançou seu primeiro disco, Inventario, em 1978, 2 anos depois de Belchior estourar com Alucinação. Com 4 décadas de carreira, mais de 20 discos lançados e milhões de cópias vendidas, ele nunca veio ao Brasil, mas em todos os demais países da América Latina continua atraindo multidões. Até 2005, pouco antes de Belchior se isolar do cenário musical, Sabina gravou 18 álbuns, o que indica que o cearense, por seu interesse no universo latino-americano, possa ter conhecido o cantor andaluz. Se considerarmos a voz nasalada, a extensão das letras, a complexidade da narrativa das canções, o diálogo com a literatura e as inúmeras referências a outros universos discursivos, reconhecemos indiscutivelmente diálogos entre Belchior e Sabina, reverberando o estilo dylaniano.
Do ponto de vista da relação entre pessoa e personagem nas "letras", encontramos, igualmente, semelhanças entre a obra de Belchior e a de Sabina. Os dois investiram em cancões autobiográficas, como demonstra "Apenas um rapaz latino-americano", de 1976, e "Lo niego todo", do disco mais recente de Sabina, de 2017. No que se refere às temáticas e à escolha de gêneros musicais, a conexão com a tríade sexo, drogas e rock-and-roll é um dos vínculos entre Belchior e Sabina, como mostram os discos Ruleta rusa, de Sabina, e Cenas do próximo capítulo, de Belchior, ambos de 1984. Pela ousadia nos gestos musicais, se o espanhol foi batizado por um jornal chileno de "profeta do vício", Belchior também declarou seu gosto pelos "maus hábitos", ao lançar o CD Vício elegante (1993).
Outro tema comum aos dois é a ênfase nos amores e especialmente em seus fracassos, como constatamos na letra de "Contigo", no verso "Yo no quiero un amor civilizado Con recibos y escena del sofá. Lo que yo quiero, corazón cobarde, Es que mueras por mí", e na "Amor de perdição", de Belchior, no trecho "Entrar, ficar em ti, tem sido o meu melhor perigo. E nosso amor se perdeu, entre tantos quereres, E hoje já era o que era para não ter fim". Além dessa aproximação verbomusical, identificamos diálogos entre Sabina e Belchior, no modo sensual com que os cancionistas lidaram com as suas identidades físicas e corporais, o que se vê nas letras de canções, nas capas de álbuns e nos shows ao vivo.
Enquanto no Brasil, Belchior explorava uma imagem de homem sensual, como comprova os discos Coração selvagem, de 1977, e Todos os sentidos, de 1978, Sabina lançava na Espanha, em 1999, o que viria a ser seu disco mais famoso, 19 días y 500 noches, com uma campanha que incluía fotos do artista posando de cueca e meias. A obra de Belchior, assim como a de Sabina, são provas artísticas de que é preciso sempre defender a liberdade, como registra a canção "Bel-prazer", de 1978, e "Eh, Sabina" (1984), canções-manifesto dessa posição.
Aliado às características da obra em si, tanto Belchior quanto Sabina são detentores de um carisma impressionante junto aos públicos. Na relação com os ouvintes, a experiência de ir a um show de Belchior era tão deslumbrante como a de assistir a um concerto de Sabina. Ao investigar os diálogos entre Belchior e Sabina, tendo Dylan como voz fundante, não podemos nos limitar a meras comparações. O importante é perseguir como se deu, no cancioneiro dos cantautores, essa incorporação de referências fundamentais, como a de Dylan.
Ao colocar em diálogo os "filhos de Bob Dylan", comprovamos as reflexões de Jorge Luis Borges, no texto "Kafka e seus precursores" (1951), ao afirmar que "cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do passado, como há de modificar o futuro". Não podemos esquecer que a obra desses artistas vai muito além de Dylan, ao amalgamar referências de variados universos culturais. Mas essas obras pressupõem que um autor sempre nasce como um ponto que se liga necessariamente aos outros que vieram antes deles".
Análise feita po Josely Teixeira Carlos, pós-doutora em Análise do Discurso e Música pela Paris X. Doutora em Letras pela USP/Sorbonne. Pesquisadora da USP, com mestrado e doutorado sobre Belchior, vem investigando na última década a obra de Joaquín Sabina.
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