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De Bob Dylan a Joaquín Sabina: análise sobre os pares de Belchior
Vida & Arte

De Bob Dylan a Joaquín Sabina: análise sobre os pares de Belchior

Pesquisadora Josy Teixeira analisa as ligações entre o mais latino-americano compositor brasileiro e o maior letrista da canção em espanhol, Joaquín Sabina. Além dos encontros dos dois com Bob Dylan
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Muito já se falou sobre a relação entre Belchior e Bob Dylan. O cearense foi muitas vezes considerado como a versão brasileira do músico estadunidense. No mundo hispano-hablante, o cantor, compositor e escritor espanhol Joaquín Sabina também é comparado a Dylan, sendo nomeado o "Bob Dylan em castelhano".

É nesse cenário que abordo os diálogos entre Belchior e Joaquín Sabina. Se, em terras brasileiras, o artista sobralense foi comparado ao Prêmio Nobel de Literatura, o estilo de Belchior se aproxima à identidade musical de Sabina.

Um dos primeiros pontos que liga esses artistas da canção de autor ao trabalho de Dylan é a profundidade das obras. Efetivamente, a fineza e sofisticação com que tratam o texto da canção popular faz jus ao trabalho do precursor Bob Dylan.

Para que o público brasileiro possa apreender e se aproximar da identidade musical de Sabina, podemos perguntar: seria Belchior o Joaquín Sabina brasileiro?

Sabina, que tem 73 anos, lançou seu primeiro disco, Inventario, em 1978, 2 anos depois de Belchior estourar com Alucinação. Com 4 décadas de carreira, mais de 20 discos lançados e milhões de cópias vendidas, ele nunca veio ao Brasil, mas em todos os demais países da América Latina continua atraindo multidões. Até 2005, pouco antes de Belchior se isolar do cenário musical, Sabina gravou 18 álbuns, o que indica que o cearense, por seu interesse no universo latino-americano, possa ter conhecido o cantor andaluz.

Se considerarmos a voz nasalada, a extensão das letras, a complexidade da narrativa das canções, o diálogo com a literatura e as inúmeras referências a outros universos discursivos, reconhecemos indiscutivelmente diálogos entre Belchior e Sabina, reverberando o estilo dylaniano.

Do ponto de vista da relação entre pessoa e personagem nas "letras", encontramos, igualmente, semelhanças entre a obra de Belchior e a de Sabina. Os dois investiram em cancões autobiográficas, como demonstra "Apenas um rapaz latino-americano", de 1976, e "Lo niego todo", do disco mais recente de Sabina, de 2017.

No que se refere às temáticas e à escolha de gêneros musicais, a conexão com a tríade sexo, drogas e rock-and-roll é um dos vínculos entre Belchior e Sabina, como mostram os discos Ruleta rusa, de Sabina, e Cenas do próximo capítulo, de Belchior, ambos de 1984. Pela ousadia nos gestos musicais, se o espanhol foi batizado por um jornal chileno de "profeta do vício", Belchior também declarou seu gosto pelos "maus hábitos", ao lançar o CD Vício elegante (1993).

Outro tema comum aos dois é a ênfase nos amores e especialmente em seus fracassos, como constatamos na letra de "Contigo", no verso "Yo no quiero un amor civilizado Con recibos y escena del sofá. Lo que yo quiero, corazón cobarde, Es que mueras por mí", e na "Amor de perdição", de Belchior, no trecho "Entrar, ficar em ti, tem sido o meu melhor perigo. E nosso amor se perdeu, entre tantos quereres, E hoje já era o que era para não ter fim".

Além dessa aproximação verbomusical, identificamos diálogos entre Sabina e Belchior, no modo sensual com que os cancionistas lidaram com as suas identidades físicas e corporais, o que se vê nas letras de canções, nas capas de álbuns e nos shows ao vivo.

Enquanto no Brasil, Belchior explorava uma imagem de homem sensual, como comprova os discos Coração selvagem, de 1977, e Todos os sentidos, de 1978, Sabina lançava na Espanha, em 1999, o que viria a ser seu disco mais famoso, 19 días y 500 noches, com uma campanha que incluía fotos do artista posando de cueca e meias.

A obra de Belchior, assim como a de Sabina, são provas artísticas de que é preciso sempre defender a liberdade, como registra a canção "Bel-prazer", de 1978, e "Eh, Sabina" (1984), canções-manifesto dessa posição.

Aliado às características da obra em si, tanto Belchior quanto Sabina são detentores de um carisma impressionante junto aos públicos. Na relação com os ouvintes, a experiência de ir a um show de Belchior era tão deslumbrante como a de assistir a um concerto de Sabina.

Ao investigar os diálogos entre Belchior e Sabina, tendo Dylan como voz fundante, não podemos nos limitar a meras comparações. O importante é perseguir como se deu, no cancioneiro dos cantautores, essa incorporação de referências fundamentais, como a de Dylan.

Ao colocar em diálogo os "filhos de Bob Dylan", comprovamos as reflexões de Jorge Luis Borges, no texto "Kafka e seus precursores" (1951), ao afirmar que "cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do passado, como há de modificar o futuro.".

Não podemos esquecer que a obra desses artistas vai muito além de Dylan, ao amalgamar referências de variados universos culturais. Mas essas obras pressupõem que um autor sempre nasce como um ponto que se liga necessariamente aos outros que vieram antes deles.

Josely Teixeira Carlos é pós-doutora em Análise do Discurso e Música pela Paris X. Doutora em Letras pela USP/Sorbonne. Pesquisadora da USP, com mestrado e doutorado sobre Belchior, vem investigando na última década a obra de Joaquín Sabina

 

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