"Vida, devolva minhas fantasias, meus sonhos de viver a vida, devolva meu ar". A canção do grupo KLB toca num aparelho de som, enquanto alguém folheia revistas sobre os dilemas comportamentais da adolescência. Nos pés, tamancos ou chinelos coloridos de plataforma. A calça pode ser um jeans de cintura baixa, com a barra bem rente ao chão. Os acessórios de miçangas e biscuit, uma blusa bem colorida com estampa de desenho animado e um chapéu conhecido como "bucket hat" compõem o vestuário. Se ligar o computador, rapidamente aparecem solicitações de amizade e convites para participar de comunidades virtuais na mídia social Orkut ou mensagens animadas no programa de comunicação instantânea MSN Messenger.
A cena remonta aos anos 2000, no entanto, com algumas adaptações, pode facilmente ser comparada ao agora. Numa mistura colorida, divertida e repleta de possibilidades, a nostalgia desses tempos ganha da moda de rua a editoriais de grifes, festas temáticas, produções da música, do audiovisual e da internet, além de cada vez mais entusiastas. No embalo, o retorno de produtos culturais do período e lançamentos inspirados na época podem revelar o movimento cíclico das tendências de moda e do comportamento em sociedade, mas também o convite à ideia de uma nova era. Para algumas pessoas, seria até a expressão de uma época em que se almejava a alegria em diversos âmbitos da vida.
Essa estética representava o desejo de felicidade da virada do milênio. Não à toa, o regresso à atmosfera da primeira década do século XXI pode acentuar o movimento pela liberdade e pelo otimismo daquela época, em associação à transição do período pandêmico da Covid-19. Após dois anos de restrições para combater o coronavírus, a ampla vacinação da população impulsiona o sentimento de fim de ciclo em busca do novo. Com o cotidiano cada vez mais acelerado, devido à conectividade que redefine relações afetivas e trabalhistas, esse movimento também parece exaltar um momento em que tudo — visto com saudosismo, vale ressaltar — parecia mais simples e feliz. Talvez evidencie, ainda, o escapismo à complexidade desses tempos.
O trio KLB, responsável pela canção "A dor desse amor" (2000), que abre esta reportagem, volta aos palcos em 2022. Os irmãos Kiko, Leandro e Bruno realizam a turnê "KLB 20+2 Experience" pelo Brasil, em alusão aos 22 anos do primeiro disco.
Recentemente, a Mesbla, uma das maiores marcas de varejo de moda no Brasil dos anos 1990, anunciou o retorno em loja virtual. Para completar, o engenheiro Büyükkökten, criador do Orkut, reativou a página on-line. A ação repercutiu entre a geração que cresceu com a rede social.
Em comunicado na web (orkut.com), ele afirma, em referência ao ambiente por vezes tóxico que a internet se tornou: "O orkut.com encontrou uma comunidade porque reuniu vozes diversas de todo o mundo em um só lugar. Trabalhamos muito para tornar o orkut.com uma comunidade onde o ódio e a desinformação não fossem tolerados. O mundo precisa de bondade agora mais do que nunca. Há tanto ódio on-line nos dias de hoje, e nossas opções para encontrar e construir conexões reais são poucas e distantes entre si".
Em "Da leveza - rumo a uma civilização sem peso" (2016), o filósofo francês Gilles Lipovetsky versa sobre a utopia da felicidade e de uma vida mais leve, em contraponto à dinâmica acelerada e exigente da rotina contemporânea. O "culto ao bem-estar", segundo o pensador, anda na contramão da velocidade do mundo virtual e dos dispositivos móveis. De modo irônico, esse imaginário também nutre uma outra sensação de peso: a de buscar, cada vez mais e exaustivamente, o alívio do estresse, a desaceleração e uma sensação "zen".
Y2K
A estética dos anos 2000 também pode ser referida como "Y2K", abreviação de "Years 2000" (do inglês, anos 2000). A tendência mescla cores vibrantes em diversas peças, brilhos com aplicação de strass, miçangas, jeans, vestidos com alças, babados, decotes quadrados e mais.
"A inspiração nos anos 2000 parte de um momento pós pandemia, em que as pessoas procuram se conectar com épocas em que a vida era mais fácil, mais simples", afirma Sabrina Aguiar, proprietária e diretora criativa da marca de moda autoral Tees. Com o lema "Liberdade é estar à vontade consigo mesma", a loja on-line explora a estética daquela época em diferentes peças. "A tendência inspirou demais a marca, por ser marcante para a maioria do meu público, que gira em torno de 25 a 35 anos. Bem colorida e divertida, além de trazer alegria, a tendência traz boas lembranças e afeto".
Segundo o designer Vitor Cunha, "a moda é uma expressão e as tendências refletem os valores da sociedade em determinada época. O retorno de uma moda que já foi considerada como 'no sense' ou de mau gosto, hoje tem outro significado e outra cara". Com a marca que leva seu nome, Vitor Cunha Autoral, ele aposta na estética com o "viés da liberdade de vestir estranheza e ser livre de rótulos".
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Expressar um tempo
No Gandaia Club, localizado na Praia de Iracema, jovens expressam a mistura de tendências típicas da virada do milênio de quinta a domingo. Victor Wesley, sócio-proprietário do espaço, diz: "Os anos 2000 é a cara do Gandaia". O bar, inclusive, conta com uma carta de drinks inspirada na série de jogos eletrônicos e desenho animado "Pokémon", icônica das décadas de 1990 e 2000.
A festa "2000's generation" aconteceu no último sábado, 14, no Gandaia. Lara Albuquerque, jornalista e produtora da festa, celebra: "A festa, parceria do Gandaia e da Alpha Produções, é pensada para além da nostalgia. É uma manutenção dessas memórias. Foi uma época tão boa e feliz. Estar junto, preservando e fazendo memórias, é muito importante depois do que a gente viveu (pandemia). É uma maneira de valorizar os nossos dias e eternizar uma década tão boa para tanta gente".
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"Supermercado de estilos"
O antropólogo inglês Ted Polhemus cunhou a expressão "supermercado de estilos" no século XX, diz Syomara Duarte, professora do curso de Design-Moda da Universidade Federal do Ceará (UFC). Já nessa época era possível experimentar a diversidade de criações, formas e estilos no vestir e em áreas relacionadas à estética.
"Uma grande tragédia ocorreu no início do século XXI: a queda das torres gêmeas. Convicções ocidentais foram postas à prova. De que forma isso poderia atingir a moda, um campo talvez tão efêmero e fugaz que satisfaz desejos por vezes superficiais? Muita gente voltou-se para suas vidas, questionando o que era importante", explica. Segundo a professora, a vestimenta confortável se consolidou em ambientes caseiros e descontraídos. Em meio ao isolamento social rígido da pandemia da Covid-19, isso retornou. Depois, surgiram trajes híbridos e combinações inusitadas compartilhados pela internet, além da renovações de experiências.
A professora cita que na Paris de 2021, uma magazine fechada há décadas foi modernizada, com estrutura metálica interna, somada a tecnologia, novas cores, ambientes integrados para marcas francesas, além de pisos, displays e painéis de vidro. O edifício buscava "emergir de uma grande inatividade mundial" e "tornou-se novamente um ponto de comércio e turismo da cidade".
Para Syomara, reviver ou renovar momentos por meio de objetos ou espaços está ligado ao Design Emocional, área do Design de Experiência. "A sensação de agradabilidade é aferida por camadas de emoção que podem mostrar o significado, desde emoções mais externas (viscerais) às mais aprofundadas (reflexivas). Nos percursos estilísticos que fizemos do século passado para cá, é possível perceber que a moda, o visual merchandising e as vitrines refletem os acontecimentos por estudos e decodificação física, e transforma sentimentos em significados para cada um de nós, a depender da individualidade e escolha perante um supermercado de estilos".
Quais são as músicas mais ouvidas dos anos 2000 no streaming?
O serviço de streaming de áudio Spotify apresenta as canções lançadas na primeira década do milênio mais tocadas na plataforma. O Top 5 é composto por:
1. Ana Cañas, Nando Reis - Pra Você Guardei O Amor
2. Charlie Brown Jr. - Só os Loucos Sabem
3. Lulu Santos - Apenas Mais uma de Amor
4. Charlie Brown Jr. - Dias De Luta, Dias De Glória
5. Linkin Park - In the End
Nostalgia em mais plataformas
O Deezer, serviço de streaming de áudio, também “entrou na onda” do “revival”. Em outubro de 2021, em alusão ao Dia das Crianças, a plataforma lançou o projeto “Memórias da Infância”, com regravações de músicas que marcaram quem viveu infância e juventude nas décadas de 1990 e 2000. As faixas, cantadas por artistas nacionais e internacionais, integram playlist exclusiva do streaming. Entre os destaques, está Dilsinho cantando “Dias Atrás”, da banda CPM 22; e Céu com versão de “Baby One More Time”, de Britney Spears.
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O TikTok, aplicativo de vídeos curtos, embarcou na nostalgia dos anos 2000. Também em outubro do ano passado, a plataforma promoveu a campanha “#2000s”. No projeto, criadores de conteúdo digital relembravam a moda e os momentos mais emblemáticos da época. Uma série de transmissões virtuais reuniu nomes que marcaram o período, como a cantora Kelly Key, o cantor Supla e o apresentador, cantor e dançarino Yudi Tamashiro. A lembrança da estética da virada do milênio também pode ser contemplada em diversos vídeos do aplicativo.
Tendência mary jane
Nos anos de 1990 e 2000, os clássicos sapatos mary jane, da década de 1920, retornaram às vitrines daquela época. Com a volta da estética da virada do milênio, os “sapatinhos de boneca” podem ser encontrados em plataformas como Shein, Zattini, Renner e Miu Miu. A consultora de imagem Camile Stefano dá cinco motivos para apostar na tendência.
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Calcinha aparente
A tendência “calcinha aparente”, popularizada nos anos 2000, também voltou: parte da roupa íntima feminina, mais precisamente as alcinhas laterais, ficam à mostra, passando do cós da peça inferior. Celebridades e fashionistas como Anitta, Rihanna, Kendall Jenner e Rafa Kalimann já aderiram à moda.
Sabrina Low, modelo e influenciadora digital, testou a tendência pelas ruas de São Paulo, onde mora, e compartilhou em suas mídias sociais. Segundo a criadora de conteúdo digital com mais de 65 mil seguidores no Instagram (@eusabrinalow), as “cantadas ficaram agressivas”. “Tive até um homem me seguindo por vários quarteirões, o que me assustou muito”, alertou. “Mas as mulheres mais próximas da minha idade amaram a novidade e recebi muitos elogios”.
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Podcast Vida&Arte
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