Em larga escala, um século humano faz escoar apenas instantes do tempo universal. Assim, oscilamos de ínfimos a grandes, sempre que a memória nos socorre com a densidade de fatos que pontuam nossa história. Cem anos fecham um ciclo em 2022. Neste ano, o campo cultural brasileiro reverbera a atuação de escritores e pintores que se uniram pelo movimento modernista. Naquele momento inaugural, emergiu um modo de ver próprio da Semana de Arte Moderna de 1922 enquanto, no estado do Ceará, nascia o pintor Antonio Bandeira. O tempo teceu duas décadas até unir esses dois fatos aparentemente distantes. Na década de 1940, um fio histórico e outro, biográfico, cruzaram-se no ponto em que o jovem cearense iniciou a trajetória artística que o conduziria à radicalização dos valores plásticos modernistas.
A arte vivida com a intensidade de um imperativo conferiu a Bandeira os contornos de um personagem monumental. Sobre todo monumento muito já se disse. Mas tanto há ainda a dizer. Ouvem-se vozes sobrepostas, cujo maior desejo é o de traduzir o artista e sua obra, a partir da ciência, da estética, da literatura, do audiovisual, do domínio educacional, comunicacional, em tom rigoroso, memorialístico ou afetivo, em disputa ou em convergência. Criou-se assim uma imagem multifacetada do artista, em mosaico, que busca articular suas várias dimensões.
No centenário de nascimento de Antonio Bandeira, o universo da arte confere destaque à figura desse artista-monumento, impregnada de passado-presente-futuro. A originalidade de sua obra plástica o fez representante dos mais caros e permanentes valores no campo artístico. Aquele que foi denominado "raro", "colecionador de crepúsculos" ou "poeta das cores", constituiu-se assim em exemplo tanto no discurso especializado, quanto nas práticas de reconhecimento entre pares. Afinal, a quantos artistas o tratamento conferido a sua poética serviu de inspiração?
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Outros fios ainda se cruzaram na composição e projeção do ponto de vista do artista sobre o espaço social da arte. Basta evocar sua atuação na formação de instituições de consagração artística no Ceará, a exemplo da criação de associações e museus; e ainda aquele da integração da arte cearense ao circuito da arte moderna brasileira.
Ao longo das três décadas de trabalho que antecederam seu falecimento prematuro em 1967, Bandeira construiu seu estilo próprio predominantemente a partir da experiência comparativa de três cidades: Fortaleza, Rio de Janeiro e Paris. A sólida marca estilística que hoje se tornou imediatamente reconhecível pelo público revela a conversão de suas experiências sensíveis ao filtro dado pela história cumulativa das formas plásticas.
O tempo investido no caminho percorrido, da década de 1940 até os anos de 1960, mina toda desconfiança acerca do suposto caráter aleatório de seu processo de criação plástica. Um exame mesmo rápido de transformações das formas por ele elaboradas afasta esse sentimento de apego ao figurativo representativo. Este pairava não apenas sobre sua produção artística, mas sobre todo o abstracionismo lírico ou informal, desde a sua emergência. A eloquência do gesto livre, o colorido na forma de drippings ou o escorrimento planejado de tinta sobre a tela são recursos de criação plástica, conquistados por Bandeira graças a intenso esforço de desprendimento da origem figurativa de seu trabalho.
Entre o peso da figuração expressionista dos anos 1940 e a leveza configurada pela explosão de cores presente nas últimas produções na década de 1960, encontra-se um conjunto de obras que o aproximam do movimento concretista brasileiro dos anos 1950. Enquanto um cenário de embates entre abstração geométrica e arte informal se desenhava além-mar, no Brasil o movimento concretista buscava se afirmar como signo de modernidade no âmbito da produção plástica abstrata, oposta à tradição associada ao atraso.
Naquele contexto, a elaboração pictórica do artista apontava inquietações em torno da persistência figurativa, assim como certo inconformismo com a designação "arte abstrata". Eram então recorrentes temas e títulos de caráter figurativo, mas de elaboração semiabstrata, indicativa do movimento de valorização das cores como recurso plástico soberano. O que se via então sobre as telas do artista na época eram, de fato, figuras geometrizadas. Por meio de uma pintura ambivalente, Bandeira conformou um espaço limite entre experiência sensorial cotidiana (com distinção entre figuras da natureza e humanas) e a concepção geométrica (fragmentando planos e figuras), que o aproximou do universo cubista e concretista. Porém, é bom lembrar que a limitação a cânones da figuração, da abstração ou de "ismos", importa sempre mais à crítica do que a artistas da dimensão de Antonio Bandeira.
Kadma Marques é colunista do Vida&Arte, professora, pesquisadora, curadora e socióloga da arte
A abstração lírica na pintura de Bandeira
Ao chegar a Paris em 1946, Bandeira não poderia imaginar que sua vida estaria para sempre ligada a essa cidade. Na verdade, já estava mesmo antes de sua primeira viagem ao exterior. Foi o suíço-francês Jean-Pierre Chabloz quem incentivou o artista a viajar para o Rio de Janeiro, então capital do País. E a bolsa de estudos em Paris lhe foi concedida por indicação de Raymond Warnier, adido cultural da Embaixada da França no Brasil.
Fala-se num Bandeira muito à vontade nos cafés frequentados por existencialistas, nos bares onde se podia ouvir Juliette Greco, e na companhia do pintor boêmio Wols. O ambiente parisiense de nihilismo pós-guerra certamente marcou o jovem de 24 anos, recém-saído de Fortaleza, pequena cidade onde nascera. Mas o artista conseguiu sobrepor a isso sua enorme alegria de viver. De fato, apesar das dificuldades financeiras, vivia rodeado de amigos brasileiros e franceses, atraídos por seu temperamento afável, por suas ideias romântico-utópicas e pelo vigor de seus projetos. Somava-se a isso o exotismo do tipo físico: alto, forte, moreno de rosto largo e com uma voz alta e rouca, incomum. Bandeira tinha o porte adequado para abrigar a personalidade exuberante que exibia. Por outro lado, uma extrema delicadeza de espírito, que frequentemente se traduzia em gestos de rara fidalguia, compensava o transbordamento psicológico ou físico.
A amizade entre Bandeira e Wols foi decisiva para a iniciação do nosso pintor na abstração lírica. Por intermédio de Wols, ele entrou em contato com artistas que integravam o movimento, inclusive com Camille Bryen. Juntos formaram o grupo Banbryols, denominação criada a partir do nome dos três artistas. Em pouco tempo, faria sua primeira exposição individual.
Depois de quase cinco anos, decide ir ao Brasil. Expõe em importantes museus, participa de vários salões, e as novidades do seu trabalho são aplaudidas pela crítica. O pintor volta, em 1954, para sua segunda e fértil temporada em Paris: realiza exposições individuais em Londres (1955), Paris (1956) e Nova York (1957); cria um grande painel em Bruxelas (1958) e tem suas obras nos acervos de galerias ao lado de artistas renomados. Em 1960, volta mais uma vez ao Brasil, reconhecido e consagrado. Retorna a Paris em novembro de 1964, para a última temporada, encerrada com sua morte precoce em outubro de 1967.
Em sua curta vida, Bandeira participou de muitas bienais de São Paulo e de Veneza, de importantes salões no Brasil e em Paris, expôs nas principais cidades do Brasil, da Europa e dos Estados Unidos. Como resultado da complexidade de seu temperamento, Bandeira transitava com facilidade da extrema delicadeza dos pequenos guaches em tons pastel ao vigor do colorido forte das grandes telas; das suaves aguadas e dos nanquins às enérgicas pinceladas; às largas espatuladas com matéria espessa, aos escorrimentos de tinta. E foi um incansável experimentador: fez colagem com papel e com miçangas, pintou sobre matriz de jornal e sobre isopor. Exímio colorista, famoso pelo "azul Bandeira", tenta, com êxito, os noturnos e chega à máxima depuração do branco sobre fundo branco. Mas seus antigos temas, as árvores, cidades e paisagens longínquas, permanecem sob suas galáxias de miríades de pontos brancos, seus féericos riscos luminosos, suas explosões de fogos de artifício. Se a vida do Bandeira não tivesse sido interrompida tão cedo, para onde o levaria a sua pintura?
(*Reprodução do texto da curadora Vera Novis, publicado em março de 2010 no folder que acompanhava o convite para a exposição em Paris)
Antonio Bandeira - Um Pioneiro Internacional
Antonio Bandeira nasceu no emblemático ano de 1922, em Fortaleza, e faleceu, prematuramente, em 1967, em Paris. Foi um artista com trânsito internacional, fato raro na época, e sua obra ocupa um lugar singular, não apenas na arte brasileira, mas no contexto da expansão do Abstracionismo Informal na França. Realizou importantes exposições individuais em Paris, Londres e Nova Iorque, mas jamais abandonou o Brasil, e sempre manteve sua independência criativa.
Autodidata, desde cedo revelou seu talento e, na década de 1940, participou ativamente da cena artística cearense. Em 1943, recebeu medalha de bronze no 9º Salão Paulista de Belas Artes, fato extraordinário para um artista tão jovem e residente fora do circuito Rio-São Paulo.
Seu trabalho nesse período era figurativo, mas nada acadêmico, retratando a periferia de Fortaleza, em obras vibrantes, de intenso colorido. Em 1945, Pierre Chabloz organizou, na Galeria Askanasy, no Rio de Janeiro, uma exposição de artistas cearenses. Bandeira foi para a abertura e, de forma surpreendentemente rápida, realizou sua primeira exposição individual em 1946, no Instituto dos Arquitetos do Brasil - RJ, sendo no mesmo ano contemplado pelo governo francês com uma bolsa de estudos para Paris, onde permaneceu de 1946 a 1950.
Lá, Bandeira fez a opção pela Abstração Lírica, tornando-se um dos pioneiros dessa vertente, integrando o Grupo Banbryols (1949-1951). Em 1950 realizou exposição individual em Paris, na Galerie du Siècle, já apresentando as paisagens, cidades e árvores que se tornariam a sua marca como artista. Voltando ao Brasil em 1951, participou da I Bienal de São Paulo, e, se já era um pioneiro da abstração na Europa, aqui destacou-se imediatamente, sendo premiado com a medalha de prata. A partir daí o artista, com grande sucesso, alternou períodos no Rio e em Fortaleza, a outros em Paris, até ter sua carreira interrompida por um erro médico.
A pintura de Antonio Bandeira é inconfundível. Nas suas cores que escorrem, há uma insinuação de imagens e brilhos, que apenas se deixam entrever. É o acaso, mas sob controle, pois, no seu abstracionismo lírico há uma rede compositiva, uma estrutura, sobre a qual ele tece seus trabalhos, com cores, manchas, pingos e traços, e dos quais sempre emana, sutilmente, um perfume da figura.
Denise Mattar é curadora de artes visuais
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