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Mia Couto: "vivemos todos os dias momentos de loucura"
Vida & Arte

Mia Couto: "vivemos todos os dias momentos de loucura"

O moçambicano Mia Couto, um dos maiores escritores de língua portuguesa da atualidade, conversa com O POVO sobre seus trabalhos recentes, a importância da formação de leitores e a relação com as memórias
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Escritor Mia Couto conversa sobre o livro 'O Mapeador de Ausências' (Foto: Fernanda Barros/ O Povo)




 (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Escritor Mia Couto conversa sobre o livro 'O Mapeador de Ausências' (Foto: Fernanda Barros/ O Povo)

Quando Mia Couto veio ao Brasil pela primeira vez, ele acreditou que estava conhecendo um de seus lares. Filho de poeta, o escritor cresceu rodeado de autores brasileiros, porque era a literatura em língua portuguesa que existia com maior proporção em Moçambique. Já adulto e com uma carreira extensa que atravessa o jornalismo, a biologia e a literatura, começou a visitar o território brasileiro com regularidade. Aqui, estão muitos de seus leitores e também uma de suas casas.

Após mais de dois anos sem viagens por causa da pandemia do coronavírus, retornou. Antes de seu destino a São Paulo, passou por Fortaleza para participar de uma conversa sobre a importância da formação de leitores, ao lado de Socorro Acioli e Jeferson Tenório. O diálogo, promovido pela Companhia da Educação, projeto de cunho pedagógico da Companhia das Letras, e pelo Centro Cultural Porto do Dragão, foi aberto presencialmente para professores. Houve uma exibição on-line para o público geral, que está disponível no Youtube desde terça-feira, 31 de maio.

Antes do evento, o escritor de livros como "Terra Sonâmbula" (1992) e "Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra" (2002) recebeu O POVO em um camarim no Teatro do Dragão do Mar. Assim que foi à porta para nos cumprimentar, percebeu que eu e a fotógrafa estávamos de máscara. Atento aos detalhes, disse: "me deixem pegar a minha também em respeito a vocês". Foi somente com certa insistência da produção que o Mia Couto permitiu-se relaxar.

Sentado em uma cadeira, ele que começou a puxar assunto enquanto as especificidades para as gravações eram resolvidas. "Fui jornalista durante um tempo. 11 anos. Então, estamos entre colegas. Não são vocês que estão fazendo a entrevista. Estamos todos", tranquilizou. Quando questionado sobre suas experiências em um jornal, respondeu: "Eu gostei, mas depois estava devorando minha alma, aí eu fugi. Acho que ainda sou jornalista. Quando se é, não por profissão, mas por entrega, acho que não se deixa de ser, mesmo que a gente nunca mais faça isso de maneira profissional".

Mia Couto conversa com a voz baixa, quase em um sussurro. Mas fala como escreve. Faz piadas, ao mesmo tempo que traça percepções de vida vinculadas aos conhecimentos ancestrais das culturas de Moçambique. Em entrevista ao O POVO, ele aborda a importância da formação de leitores, o incentivo à imaginação e as relações com as memórias. Ainda se aprofunda no livro "O Mapeador de Ausências", seu lançamento mais recente no Brasil pela Companhia das Letras. No enredo, o escritor entrelaça elementos autobiográficos com ficção e reencontra alguns sentidos de sua infância.

O POVO: Você veio a Fortaleza falar sobre a formação de leitores. No mundo que a gente vive atualmente, por vezes tão caótico, qual a importância do incentivo à formação de leitores?

Mia Couto - Acho que o mundo é caótico mesmo, sempre foi. Nós temos a dificuldade de lidar com o caótico, com a desordem. Mas ele está na régua. A vida é só uma espécie de negação desse caos, uma tentativa de organização desse caos. Mas, para ser mais prático, o caos é mais visível agora. Temos a percepção mais clara de que é assim e temos medo. Então acho que a nossa espécie é uma espécie produtora de sentido. Precisamos que haja sentido, que haja uma história, uma narrativa, para comandar esse caos. E a leitura e a escrita nunca devem se separar da gente. Quando falamos da formação de leitores, devemos falar sempre de leitor para escritor, porque todos podem ser escritores e são escritores, no sentido de criarem histórias. Todos são criadores de histórias ou criadoras de histórias. Então acho que, em casa, na família, na escola, na sociedade, deveria haver esse convite para que as pessoas contem histórias e contem suas próprias histórias. Não penso em termos literários, mas que as pessoas sejam capazes de produzir histórias. Para mim, mais preocupado do que as crianças estarem a deixar de ler e os adultos também, é que se perde a estabilidade de construirmos histórias, de fazermos da nossa própria vida uma história. Isso, para mim, é bem mais grave.

O POVO: Qual a conexão que podemos fazer entre a construção das histórias e de um leitor com a leitura do mundo?

Mia Couto - Acho que me ajudaste, porque, quando falaste da leitura do mundo, é isso. Isso é parte da resposta. Não lemos só a escrita, nós lemos o mundo, lemos os outros. E ler vem de eleger, de escolher. Então a capacidade de ler deve ser a capacidade de escolher, de selecionar aquilo que é importante, de selecionar aquilo que achamos que vai ser a vida, a produção da própria vida. Acho que estou completamente perdido na resposta, mas estou chegando perto.

O POVO: Você sempre defendeu a imaginação, não só na infância, mas durante toda a vida. Qual o papel dessa imaginação em uma sociedade que nos obriga a ser tão racionais?

Mia Couto - Eu acho que cria-se uma espécie de divisão, uma fronteira falsa entre a loucura e a razão. E a loucura foi atirada para o território da doença. Mas nós vivemos todos os dias momentos de loucura. Somos enlouquecidos. Estamos abertos à loucura quando estamos abertos a sonhar. O sonho é a desordem. Você sonha com uma coisa que aconteceu hoje em Nova York e amanhã está no século XII no meio da África. E tudo está certo. Então acho que o que a literatura e a poesia fazem é criar essa autorização, essa licença, para pôr esses dois mundos, o da razão e o da loucura, em consonância, em diálogo, em conversa. Acho que esse mundo de hoje perdeu um pouco essa ponte, essa capacidade de diálogo com aquilo que nos parece não-racional. Mas temos medo porque vivemos em uma sociedade tão fluída, tão líquida. As pessoas precisam de certezas, as pessoas estão com medo. Todas as pessoas, em todos os cantos do mundo, estão se perguntando o que está acontecendo. E elas não têm capacidade de resposta. Não conseguem construir o futuro, portanto, não conseguem construir essa história e sentir porque estamos aqui, o que vai acontecer com os nossos filhos, com os nossos netos. Essa consciência hoje é muito mais forte do que era há 100 anos. Quando eu cresci, não é preciso ser há 100 anos, o futuro para minha classe, para minha raça, para o lugar onde eu estava, não era complicado. Se eu estudasse, eu ia ter um futuro. Portanto, mesmo que fosse uma ideia falsa, eu tinha crença nisso. Hoje não posso dizer a mesma coisa aos meus filhos. Então as pessoas já não querem histórias. As pessoas querem certezas. Querem um salvador, entidades messiânicas que tragam salvação.

O POVO: Um de seus trabalhos mais recentes foi "O Mapeador de Ausências", lançado no Brasil no ano passado. Na história, o protagonista volta para a cidade natal, Beira, onde você também nasceu, em busca de memórias que estão perdidas. Que paralelos podemos fazer entre o livro de ficção e a relação que temos com as memórias?

Mia Couto - Acho que há obviamente um lance entre esquecimento e memória. Só que nós temos a percepção errada de que o esquecimento é um lapso, um vazio. Normalmente, não é um lapso. Ou ele é construído de uma maneira em que, sobre esse grande vazio, constrói-se uma outra versão do passado. Ou ele é cancelado politicamente, como se quer fazer com a ditadura que existiu no Brasil, por exemplo. Mas é sempre fruto de uma elaboração. O esquecimento não é um vazio, qualquer coisa que deixa de ser preenchido. E acho que a solução para isso, se é que isso é um problema, no geral, é abrir espaço para várias versões do passado. O passado não pode ser dito no singular. Há muitas dimensões desse passado que foram vivenciadas não só por grupos sociais, sejam eles de mulheres, de diferentes raças, orientações sexuais, mas também por pessoas. Cada pessoa construiu uma versão desse passado. E eu, nesse livro, quando fui construir minha versão do passado, estava convicto de que havia coisas que eram verdade nessas minhas lembranças. Quando cheguei à cidade (Beira) com meus irmãos, eu percebi que inventei uma grande parte do meu passado. Mas eles também inventaram. A questão não é como o passado foi factualmente verdadeiro, mas como é que nós o construimos e o entendemos como verdade. Por exemplo, às vezes, eu olhava e dizia: "nesta casa, acho que vivi uma parte da minha pequena infância". E meus irmãos diziam: "nós nunca vivemos nesta casa, você está inventando tudo isso". Mas, para mim, aquela casa era minha. Eu tive que entrar, tive que perceber que, de alguma maneira, me habitou uma casa que não existe.

O POVO: Em sua opinião, a formação do leitor tem relação com a preservação da memória?

Mia Couto - Acho que sim. Mas sempre na ideia de que a memória tem que ser dita no plural. É nessa conversa entre memórias diversas que a gente constrói um modelo multifacetado do passado, com vários passados, vários futuros, vários mundos. O mundo e o tempo que você está vivendo hoje não é o mesmo tempo dos outros. Nós temos a ideia de que, por causa da internet, onde temos uma simultaneidade de coisas e acontecimentos, estamos vivendo no mesmo mundo. Mas não estamos vivendo no mesmo mundo. Em primeiro, porque muitas pessoas não sabem, nem tem ligação com a internet. Grande parte dos moçambicanos passam por isso. O Brasil também passa por essa condição de pobreza. Mas, em Moçambique, as pessoas, por exemplo, tem uma percepção completamente distinta do tempo que estamos falando. Nesta noção (dos moçambicanos), há um tempo circular, um tempo entre o passado e futuro, onde há uma ausência de sequência cronológica. Não é o tempo que se vive em outros mundos.

O POVO: Em entrevistas anteriores, você já falou que, durante o processo de escrita, pensa primeiro nos personagens para depois encontrar uma história. Os personagens viram essa entidade que lhe conduzem pela ficção. E, em "O Mapeador de Ausências", você apresenta elementos autobiográficos. O protagonista nasceu na mesma cidade que você e também é filho de um poeta, por exemplo. Como foi o processo de criação desse livro e dos personagens?

Mia Couto - A minha cidade foi o personagem. Os lugares da minha infância, fossem eles reais ou não. Acho que não é muito difícil, para mim, fazer o exercício que nos transporta de uma coisa não-viva para uma coisa que tem vida, que conta uma história. Por quê? Porque as culturas que são dominantes em Moçambique têm essa percepção do mundo. Não há fronteira entre o morto e o vivo. Não há fronteira entre o não-vivo e o vivo. E, portanto, uma casa tem vida, tem vozes. Pensamos que uma montanha, um rio, um lar, são entidades que falam e conversam conosco. Então, quando fui fazer várias viagens para Beira, porque agora não moro na minha cidade natal, ia com essa disposição e essa disponibilidade de escutar. E, na verdade, toda a primeira versão do livro, porque depois teve uma segunda versão, foi este encontro com essas vozes que eram os lugares. O cemitério, a minha escola onde eu comecei a ler e a escrever. Depois, em um segundo momento, apareceu o meu pai como personagem, porque eu redescobri a figura paterna nesse reencontro. Meu pai era ausente. Pensávamos nós, os três irmãos, que ele nunca sangrava e não sabia o que se passava no mundo. Ele era poeta no sentido total. Ele vivia como poeta. Por isso, pode parecer um pouco estranho que ele não habitasse naquela casa de uma maneira como nós pensávamos que deveria ser um pai, com sua presença normativa. Meu pai nunca disse para eu ler um livro. Só aos meus 50 e poucos anos, eu percebi o quanto ele mapeou o nosso percurso por essa aparente ausência. Isto é, ele, por exemplo, era tão delicado e tão gentil que tinha seu modo de fazer isso. Portanto, só percebi quem era meu pai quando eu já era avô.

O POVO: Suas histórias sempre trazem muito das culturas de Moçambique. Quando você escreve, há expectativas de como os leitores de outros lugares do mundo vão perceber o país?

Mia Couto - Não é uma preocupação no sentido de eu ter isso como uma missão ou tentar forçar qualquer coisa na história para que Moçambique apareça. Acho que o que aparece de Moçambique nas minhas histórias, ou o que eu gostaria que fosse, é aquilo que é universal e está presente em outras culturas, mas que está presente em graus diferentes. Eu gostaria muito que, ao lerem meus livros, Moçambique se tornasse mais visível. Moçambique é um país, digamos, muito pouco visível. Se acontecer, por esta via literária, sem que seja minha intenção, eu fico muito feliz.

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