Logo O POVO+
Cresce debate sobre manifestações políticas de artistas em shows; veja opiniões
Vida & Arte

Cresce debate sobre manifestações políticas de artistas em shows; veja opiniões

Após declarações recentes de artistas, músicos e especialistas debatem sobre as manifestações políticas em shows
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
INTERN_VIDA_ARTE_ (Foto: JANSEN LUCAS)
Foto: JANSEN LUCAS INTERN_VIDA_ARTE_

A cantora Elba Ramalho interrompeu o show no São João do Parque Exibição, na cidade de Salvador, em decorrência dos gritos de "Fora, Bolsonaro!" exteriorizados por parte do público no último domingo, 26. A paraibana afirmou que iria esperar a dissolução das queixas, visto que "não queria fazer política" e que o evento não era um "comício". "Tô (sic) esperando, né? A plateia está se manifestando. Como a gente vive em um país democrático, tem que deixar eles se manifestarem. Cada um tem o presidente que merece, isso é um fato", pronunciou.

Nas redes sociais, o fato gerou ampla repercussão. Parte dos internautas repudiou a ação da cantora, enquanto outros demonstraram apoio ao posicionamento. Em ano de eleição, o ocorrido atualizou o debate sobre o papel dos artistas no campo político. Com opiniões cada vez mais presentes - nos eventos, meios de comunicação e redes sociais -, as personalidades impulsionam discussões acerca do papel de engajamento social da arte.

Para o advogado e professor de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC) Emmanuel Furtado Filho, música e política estão "completamente interligadas", tendo uma condição recíproca de influência. "Produção cultural é uma forma simbólica que participa da vida social, expressando aspectos da experiência dos indivíduos", informa. Ele também elabora sobre o desenvolvimento de técnicas e aparelhos sonoros para a "capacidade de mobilização e coesão". As composições se mostram "essenciais em processos sociais e políticos", em celebrações e ritos; atividades educativas; ações de estímulos culturais; e demais atuações nos espaços cotidianos.

O profissional considera que grandes acontecimentos sempre estiveram "embalados" pela música, ao passo em que a criação musical está relacionada à conjuntura histórica. No que diz respeito aos pronunciamentos políticos, Emmanuel utiliza como embasamento o artigo 5º da Constituição de 1988, que assegura o direito à livre manifestação do pensamento. "Uma democracia não se faz sem que os cidadãos disponham de condições para manifestar o seu pensamento de forma livre. Nossa Constituição garante esse direito fundamental, dando, inclusive, destaque a um de seus desdobramentos: a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença, em que é proibida qualquer espécie de censura de natureza política, ideológica e artística", alega.

Ele ainda aponta que a participação política é "um direito e um dever" dos cidadãos. "Nada impede que uma plateia faça coro a manifestações espontâneas e pacíficas num evento, por exemplo. Nada impede, a priori, que um artista manifeste apoio a um candidato ou a um partido em suas redes sociais, durante entrevistas, em apresentações individuais". A informação é atestada pela Lei de Eleições (nº 9.504/97) que não traz qualquer vedação sobre manifestação política pública, favorável ou contrária, a um governante ou possível candidato.

Pelas normas das propagandas eleitorais de 2022, conforme resolução publicada no Diário da Justiça Eletrônico, está proibido que os artistas façam pedido direto de voto em shows e eventos (entenda mais no quadro "Showmício"). O advogado explica que medidas semelhantes funcionam para regular as condutas entre os partidos. "Devem ser interpretadas com muita prudência, para não se tornarem justificativa para cerceamento de liberdades de expressão desarrozadas". O professor ainda complementa que, se houver práticas de calúnia, injúria e difamação, é possível a "responsabilização posterior ao sujeito que praticou o ato".

abrir

História

Na letra de "Beco Sem Saída" (1990), o grupo musical Racionais MC's já denunciava que "os poderosos ignoram os direitos iguais". Poucos anos antes, em 1984, Caetano Veloso protestou em "Podres Poderes" que "morrer e matar de fome, de raiva e de sede" se tornaram gestos naturais. Ambas canções são exemplos de como a área musical pode abordar e contestar políticas públicas, uma relação histórica, de acordo com o professor e coordenador do curso de Música da Universidade Federal do Ceará (UFC), Pedro Rogério. Ele aponta momentos importantes na ordem cronológica. O primeiro é ligado ao músico cearense Alberto Nepomuceno e a sua luta pela nacionalização da música erudita, dificultada pela falta de apoio financeiro. Décadas depois, o músico Villa Lobos ganha destaque por propostas similares. "Alberto se posiciona contra o poder estabelecido e ainda consegue fazer muito. Pouco tempo depois, Villa Lobos se torna o grande nome porque, com Vargas, consegue implantar um projeto de formação nacional de música e colocar a área como destaque nas políticas públicas", detalha.

Ele também menciona o início da indústria cultural, com o fortalecimento da rádio na década de 30, e o "fenômeno" de Luiz Gonzaga. "A área vai crescendo e o poder público perde força e fica muitas vezes refém dessa força de mercado", acrescenta. Logo depois, por volta dos anos 1960 e 1970, a conjuntura da censura ditatorial incitou movimentos como Tropicália, Clube da Esquina e o Pessoal do Ceará. "É o mesmo contexto sócio-político. São músicos e intérpretes muito ligados ao ambiente universitário e, quando se vêem com as vozes cerceadas ali, é o ambiente mais propício que se tem para se manifestar, porque a Universidade não se cala com facilidade".

Ele acentua, portanto, que a cultura tem dois papéis fundamentais. "Ao mesmo tempo que ela é um reflexo dos anseios da sociedade — os artistas vão representar a voz daqueles que estão buscando por liberdade —, por outro lado, ela também propõe novos comportamentos, imprime um sentido social ", defende Pedro. Mesmo com o avanço das gerações, o professor argumenta que a arte continua propagando as mudanças necessárias. "No Ceará, temos o coletivo Mulheres da Música CE, que estão reivindicando os direitos. Tem também a música de periferia, rap, hip hop, que não vem de hoje. Ao mesmo tempo, as tradições populares continuam acontecendo, como os reisados, com os mestres de cultura. As gerações se encontram, estão no mesmo ambiente", reflete.

Entre menções de atuações perseverantes no meio, como a gestão do jornalista Claudio Pereira como secretário da Cultura de Fortaleza e do cantor Gilberto Gil como Ministro da Cultura, Pedro reverbera que "tudo é política" e reforça a necessidade de "consciência mínima" das classes profissionais. "A expressão individual precisa ser preservada, o direito de consciência crítica de expressão, mas nenhum direito é absoluto. Todo mundo pode se expressar, mas eu não deveria, por exemplo, expressar apoio ao Ai-5, a ditadura militar, em nome da liberdade de expressão", diz. Ele ainda reconhece como "importante" que os formadores de opinião divulguem seus pensamentos, principalmente em um período onde a cultura está distante das políticas públicas. "A música, como qualquer outro campo profissional, vai ter de tudo. A gente vai se surpreender com nomes que a gente não esperaria, porque é um campo vasto", pondera.

Repercussão

Em busca de uma suposta neutralidade, a produtora Roberta Medina, responsável pela edição portuguesa do Rock In Rio (RIR), defendeu durante entrevista no dia 25 de junho que "política se faz com conversa e não em cima do palco". Neste ano, o RIR da capital de Portugal esteve marcado por declarações políticas dos artistas brasileiros, como a banda Francisco, El Hombre, e os cantores Anitta e Ney Matogrosso. "Vemos artistas explorando a oportunidade de dar cara para uma multidão, de reverberar um país inteiro. É mais pela arte do que pela posição política, ninguém consegue fazer uma defesa política no palco", complementou Roberta.

O movimento é similar em eventos que já aconteceram. Durante a programação de abril do Lollapalooza, maior evento público da capital paulista após as restrições da pandemia, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) proibiu qualquer manifestação política no festival. A empresa responsável pelo Lolla, T4F, entrou com recurso no TSE alegando que não poderia agir como censora privada "controlando ou proibindo conteúdo de falas". A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por parte da seção de São Paulo, afirmou que "a liberdade de expressão, por meio da manifestação espontânea e gratuita das ideias, é essencial para assegurar a continuidade democrática e fomentar o debate público das eleições".

Em entrevista ao Vida&Arte, o cantor Falcão comunicou que não divulga falas sobre a temática em seu trabalho. "Eu acho sacanagem subir num palco, que eu respeito tudo e todos, e ficar dando força para qualquer pessoa que não me agrada e não faz o que deveria ser feito pelo País. Acho que é dar lição para o inimigo. No meu caso de cantor, quero derramar amor, dar boas lições, que eles possam sair dali carregadas de energias boas até mesmo para pensar o que elas querem para a vida delas", opina. Já na visão do cantor cearense Juruviara, muitas pessoas do meio artístico acabam se neutralizando, "mas esquecem que ficar em cima do muro foi algo que elegeu um governo genocida", enfatiza.

"Acredito que o artista deva se manifestar politicamente. O vetor da arte, da música, tem muito poder de modificação. Quando você trata de fazer arte de jogar para o mundo o que você pensa, isso já é um ato político. A política está em todo lugar, no palco, na sua casa, no bar, em todos os ambientes. Viver é um ato político", considera Juruviara. O posicionamento foi corroborado pela cantora Maria Rita durante o programa Provoca, da TV Cultura. "Essa noção de que o artista não pode falar (sobre política) vem do fascismo, vem dessas noções ditatoriais. Para eles, quanto mais silencioso, oprimido e 'mais emburrecido', melhor", consta.

 

Showmício

Até o ano de 2006, era comum os showmícios, comícios partidários realizados com o apoio dos artistas, a fim de angariar arrecadação de votos. Estas ocorrências, entretanto, continuam proibidas no ano de 2022, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no ano passado. Estão vedadas solenidades públicas de campanhas políticas sem o pagamento de cachê das atrações musicais. Por outro lado, se os candidatos quiserem alcançar recursos para as campanhas eleitorais, poderão organizar eventos fechados de arrecadação com números musicais e cobranças de ingresso. A ordem não impede que intérpretes manifestem suas opiniões em festivais e shows, por exemplo.

 

Em Fortaleza

Na capital cearense, conforme matéria publicada pelo O POVO em 30 de maio, clientes foram expulsos do Hey Joe Food'N Bar no dia 29 do mesmo mês, após se manifestarem contra o presidente Jair Bolsonaro (PL). De acordo com relatos de pessoas que estavam no estabelecimento, o público proferiu xingamentos ao presidente durante apresentação musical. Um dos sócios do restaurante, que estava presente no local, teria expulsado os visitantes. O bar se retratou com uma nota nas redes sociais, afirmando que "cientes da polarização política vivenciada no Brasil, temos trabalhado com nossa equipe e com nossas atrações na busca por respeitar as opiniões divergentes e evitar desentendimentos".

Divergências políticas também ocasionaram desconforto no Cantinho do Frango, no fim do mês de maio. Para evitar conflitos, o estabelecimento publicou uma nota de esclarecimento no dia 25 de maio, afirmando que o "único partido" da empresa é "proporcionar comida regional de qualidade, boa música, difundir a cultura, prezar pelo bem-estar e pela satisfação de quem frequenta a Casa". A publicação, veiculada nas redes sociais, ainda defendeu que o local "não tem espaço para quaisquer manifestações", apenas para "brindes e momentos felizes em família".

 

Podcast Vida&Arte

O podcast Vida&Arte é destinado a falar sobre temas de cultura. O conteúdo está disponível nas plataformas Spotify, Deezer, iTunes, Google Podcasts e Spreaker. Confira o podcast clicando aqui

O que você achou desse conteúdo?