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Perda da mãe inspira livro autobiográfico de escritor português
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Perda da mãe inspira livro autobiográfico de escritor português

Em entrevista exclusiva ao O POVO, escritor Hugo Gonçalves fala sobre o livro "Mãe", que conta a história da perda precoce da mãe e os impactos da morte para sua vida
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Livro
Foto: Divulgação Livro "Mãe", de Hugo Gonçalves, reflete sobre morte e luto

Portugal, 13 de março de 1985. "Sabes que tua mãe estava a sofrer, não sabes?", com essa frase, Hugo Gonçalves, à época um "miúdo" de oito anos de idade, ouvia a notícia da morte de sua mãe, Rosa Maria, que tinha 32 anos quando foi vítima de um câncer no útero. De tão precoce, a partida deixou marcas profundas na trajetória do garoto, que mais tarde se tornaria escritor: "se minha mãe não morresse, provavelmente não seria escritor".

Decorridos 30 anos daquele dia, Hugo lançava, em Portugal, o livro "Filho da mãe", no Brasil reintitulado como "Mãe" e lançado pela Companhia das Letras no final de 2021. Para destrinchar a obra, o autor e seu diálogo com o contemporâneo, O POVO conversou com Hugo. Confira.

O POVO - Foram necessários 30 anos para que você pudesse fazer a viagem ao passado e ao seu país natal, e escrever essa história. Por que esse tempo foi necessário?
Hugo - O trabalho para este livro, de uma forma geral, posso dizer que começou desde criança, com todas as memórias, a imaginação, das quais as memórias também são feitas. De alguma forma isto me obrigou a escrever este livro. Mas o trabalho literário, de sentar, pesquisar e conversar com as pessoas, ir à procura do lugar em que moramos, tudo isso aconteceu antes de começar a escrever o livro. E foi uma experiência, do ponto de vista literário, mais do que pessoal até, muito interessante. Era como se eu estivesse a viver e escrever ao mesmo tempo. Havia um entusiasmo, não só da descoberta de quem havia sido minha mãe e do impacto da morte dela em mim, mas uma curiosidade, mesmo com a ameaça da dor da descoberta. A literatura de certa maneira é uma forma de mascarar a verdade, às vezes é preciso… Houve dois momentos, acho que estava preparado para escrever esse livro desde sempre, escrevi várias crônicas sobre a minha mãe, mas nunca tinha tido coragem talvez de enfrentar o tema.

O POVO - Hoje você é escritor muito por causa dessa perda, como diz. Qual relação com a escrita e o processo de luto?
Hugo - A minha relação com a escrita veio do primeiro sentimento de singularidade, de ser o primeiro órfão da turma, e de como transmitir esse sentimento. A escrita foi uma forma de transmitir essa singularidade, de uma forma que não fosse apenas um menino estranho, mas de lidar com os sentimentos que eu entendia bem, desmascarar o que não estava acessível".

O POVO - Em "Mãe" você cita muitas referências da literatura mundial sobre o luto, de Tolstói a David Rieff, filho de Susan Sontag. Com tantas referências, como conseguiu produzir um relato original?
Hugo - Essa era uma das questões mais decisivas da história deste livro. Eu sabia desde muito cedo o que não queria, que era produzir um livro exclusivamente sentimental que manipulasse o leitor com a minha perda. Se eu escrevesse exclusivamente como uma criança de oito anos, seria algo completamente diferente, e eu não queria fazer isso. Mas sim escrever um livro de um homem de 40 anos, mais maduro, que olha para trás para entender por que chegamos onde chegamos. Não só da nossa vida, mas dos nossos pais e avós. E, não por acaso, tenha ido atrás de outros escritores, como você diz, porque eu queria que o livro fosse uma expressão sobre a perda, além da minha experiência pessoal. Como a perda afeta uma família, toda uma dinâmica familiar, como uma bomba, ao longo das gerações e ao longo do tempo. Nos últimos anos, talvez por causa da Covid, tem saído vários livros sobre o luto, e a morte é um dos temas universais da literatura, tal como o amor e a liberdade. Esse diálogo com outras épocas e outros lutos ajudaram a encontrar minha voz, que eu queria que fosse lúcida, pertinente, que não ficasse só refém da beleza, mesmo falando de um tema como o luto, e onde não houvesse nenhum tipo de censura. Para jogar uma luz sobre todo o "não dito".

O POVO - Em alguns momentos você faz uma espécie de arquétipo dos enlutados, como por exemplo a parte do livro que fala do luto da sua avó, definindo-o como "perpétuo e improgressivo". Como foi observar seus familiares já na fase adulta? O que isso te ensinou?
Hugo - Com oito anos eu não tinha capacidade de análise, havia coisas que eu entendia de forma intuitiva, não racional. Eu diria que minha avó estava muito agarrada com a memória de minha mãe, o fato de querer consultar uma vidente. Eu entendi que a dor é única, nós guardamos a dor só para nós, achamos que ela é só nossa, especialmente quando somos mais novos e autocentrados. Não só entendi que a dor era diferente, o luto também, mas aprendi a ter muito mais empatia, compreendendo o outro. Assim foi muito mais fácil e orgânico entender porque meu pai tinha certos comportamentos, minha avó ou meu irmão, em vez de dar mais importância às falhas e isto foi um aspecto muito positivo de ter entrado neste tema do luto.

O POVO - Em vários trechos do livro você relata uma convivência cercada por meninos e homens. Você acha que isso influenciou sua forma de lidar com o luto e todos esses sentimentos?
Hugo - Ainda sou de uma geração que herdou essa noção de que a fragilidade de um homem não deve ser pública. Como conto no livro, estudei em um colégio só para rapazes. Essa ideia de força física e mental era também algo presente. Como em casa não falávamos da morte por questão de autopreservação, meu pai não queria falar disso, era um forma de não sofrer. Eu fui criado nessa ideia de que a força é não sentir, ou pelo menos não mostrar. De certa forma isso criou o que sou, mas certo momento temos que ver a carga que nos foi dada e decidir se queremos continuar com ela e passar para a próxima geração. Há pouco tempo estava tendo uma conversa com meu sobrinho, um jovem de 20 anos, que estava me perguntando se devia pedir desculpa a uma pessoa com quem estava descontente. E eu o disse que a coragem era ser frágil. É preciso mais coragem para isso do que para ser um "durão", que é uma espécie de persona, máscara que você usa. Apesar de eu ter sido criado nesse mundo predominantemente masculino, sempre houve um respeito e até uma espécie de romantização da mulher, porque a mãe, a imagem feminina que ficou, ficou cristalizada. Imagem de mãe carinhosa, preocupada, até os seis anos vivi todos os dias com minha mãe e a maioria das crianças hoje em dia, com 2, 3 anos estão em creches. Óbvio que isso teve impacto na minha vida, embora não tenha muitas memórias.

O POVO - Os temas de infância e família estão em livros antes e depois de "Mãe", por exemplos nos teus livros "No caçador do verão", de 2015, e "Deus, pátria, família", do ano passado. São temas que você busca falar?
Hugo - Como disse há pouco, há temas que são universais e atemporais. Todos os autores têm temas que tratam mais. Lembrei do Rubem Fonseca que fala da classe social, violência, política. Especialmente na minha escrita tento, cada vez mais, dar densidade psicológica e você tem razão, as relações familiares e o livro que estou escrevendo agora tem uma saga familiar também, abordo com frequência.

O POVO - No Brasil temos mais de 670 mil mortes por COVID-19, muitas famílias enlutadas e o teu livro fala de um certo impedimento do adeus. Desde que o livro foi lançado no País, em 2021, você sentiu alguma relação da recepção do público brasileiro e a pandemia?
Hugo - É muito curioso que seria lançado em 2020 no Brasil, eu tinha viagem marcada para estar na Bienal em Brasília. Olhando em retrospectiva, vejo o passaporte e lembro de falarem "vais viajar", "isso deve ser uma coisa passageira" e todos nós sabemos agora que estávamos muito enganados. Se o livro tivesse sido publicado em 2019 não teria o mesmo impacto que teve no Brasil, foi muito bem recebido, recebo muitas mensagens de leitores brasileiros. E se me dá algum consolo chegar nessas pessoas de alguma forma, verem na minha experiência a sua experiência, que se não houvesse Covid-19 provavelmente não haveria essa tristeza generalizada e o livro talvez não tivesse tido tanta atenção. Meu pai, que é um personagem muito importante do livro, morreu de Covid em 2021, e eu não pude despedir-me dele, a não ser por telefone. Ele estava sozinho no hospital e os funerais rápidos. Descobri que ia ser pai a poucos meses (da morte dele), então via essa ligação da vida e da morte. O fato de ter escrito esse livro sobre luto me preparou muito para a morte de meu pai, mesmo tendo me despedido por telefone, com 40 anos já ter o entendimento da perda, diferente de ter oito, sua mãe sair de casa e não voltar. Também me fez pensar em algo que já tinha pensado quando escrevi "Mãe", que é escrever um livro da minha relação com meu pai, que já escrevi um pouco, mas tem muito mais a ser dito. Escrever na perspectiva do que significa ser pai, agora que sou, e do que significa ser homem nesse mundo de mudanças.

O POVO - Você morou quatro anos no Rio de Janeiro, como é sua relação com o Brasil e com os brasileiros?
Hugo - Existem duas relações, com os brasileiros: com pessoas que me dou e com o Brasil como país. Eu e o Brasil era uma história de paixão, era apaixonado pelo país e em especial pelo Rio de Janeiro, e me diziam: "Hugo, cuidado, você ser turista no Rio de Janeiro e morar no Rio de Janeiro não é a mesma coisa". Como todos os apaixonados não querem ver, né? Quem nunca esteve apaixonado e depois descobriu que não era o que pensava que era? (risos). A paixão é sempre uma forma de engano. No entanto, tive momentos extraordinários vivendo no Rio de Janeiro, trabalhei numa editora, conheci pessoas fantásticas, mas o Rio é uma cidade dura, difícil de viver. Dava por mim muitas vezes com a sensação de que era um refugiado, embora falasse com pessoas que tinham vidas muito mais duras que a minha, eu não conseguia dissociar dos problemas que via ao meu redor. Chegou um momento que fiquei desiludido e tive que lembrar que minha experiência no País não era só sobre os momentos mais difíceis que passei lá, que foram os últimos meses. Mas continuo a estar ligado ao Brasil, acompanhar o que se passa e falar com meus amigos brasileiros, em uma relação que vai ficar para a vida.

O POVO - Para finalizar, quem é o Hugo depois de "Mãe"?
Hugo - O Hugo depois de "Mãe" é mais centrado, menos nômade, mais sereno e tranquilo. O livro é um marco no meu luto, claro que continuo de vez em quando a pensar na minha mãe, mas as coisas mudaram. Antes, no dia da morte de minha mãe, eu ligava para o meu irmão e falávamos do tema sem grande profundidade. Hoje em dia, não esquecendo do dia da morte, lembro muito mais o dia do aniversário dela. Então sobrou muito mais vida e alegria, do que falar constantemente sobre a perda.

Mãe

De Hugo Gonçalves
Companhia das Letras
184 páginas
Preço médio: R$59,90

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