Logo O POVO+
José de Alencar: autores discutem a figura e a obra do escritor cearense
Vida & Arte

José de Alencar: autores discutem a figura e a obra do escritor cearense

Ao Vida&Arte, os autores da obra "José de Alencar: dispersos e inéditos" abordam aspectos do autor de "Iracema", "O guarani" e outros clássicos
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Professor e pesquisador Marcelo Peloggio (Foto: julio caesar)
Foto: julio caesar Professor e pesquisador Marcelo Peloggio

Apesar do reconhecimento nacional por livros como "O Guarani" (1857) e "Iracema (1865), o escritor cearense José de Alencar tem uma vasta obra que ainda é desconhecida. Parte desses escritos estão disponíveis no livro "José de Alencar: dispersos e inéditos", organizado pelos autores Danielle Cristina Mendes Pereira Ramos, Marcelo Peloggio, Marcus Vinicius Soares e Washington Dener. A coletânea será lançada nesta quarta-feira, 13, no Centro Cultural Banco do Nordeste (CCBNB). O evento terá um debate com um dos pesquisadores, o Prof. Dr. Marcelo Peloggio, da Universidade Federal do Ceará (UFC), com mediação feita pela jornalista e professora Isabel Costa.

"José de Alencar: dispersos e inéditos" traz 61 textos do escritor, recolhidos digitalmente de 13 cadernos do Arquivo Histórico do Museu Histórico Nacional e de publicações em jornais, revistas e livros. O resultado foi arranjado como uma mescla de textos jurídicos, romances e estudos de filosofia, para citar alguns exemplos. Com isso, o conjunto aprofunda o debate sobre o trabalho do escritor. A fim de abordar detalhes da obra, o multiartista, doutorando em Letras pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e colunista do O POVO, Lúcio Flávio Gondim, entrevistou os autores. (colaborou Lara Montezuma)

O POVO – Podem falar da importância da publicação de dispersos e inéditos sobre José de Alencar neste momento? O que esses achados podem trazer de novidade a suas leitoras e leitores? E a quem ainda não o conhece?
Danielle Cristina Mendes Pereira – A obra é fruto da pesquisa construída no projeto de pós-doutoramento do professor Marcelo Peloggio (UFC), sob orientação de Marcos Soares (UERJ). Peloggio propôs-se a estudar alguns documentos inéditos de Alencar no acervo do Museu Histórico Nacional e acabou por encontrar mais de sessenta produções dispersas e inéditas, como revela o próprio título do livro. Danielle Ramos e Washington Cunha reuniram-se à equipe, posteriormente. Houve o esforço por tratar esses documentos e trazer à baila faces ainda desconhecidas de Alencar. Já era sabido que se tratava de um escritor polígrafo, que percorria diversos gêneros, porém, sem dúvida a descoberta de uma produção robusta e até então não publicada abre espaço para que se questionem percepções sobre a sua obra, além de abrir um campo de leitura para quem ainda não a conhece. Alencar escreve em um momento seminal para a construção de imagens produtoras de sentidos convergentes à ideia de um estado nacional. Seus escritos encontrados referenda a percepção de sua recusa em percorrer vias fáceis. Ele mergulha em diálogos que envolvem literatura, filosofia e política – passando por temas surpreendentes, como a homeopatia e relações amorosas liberais, por exemplo – em um gradiente multifacetado e, muitas vezes, contraditório. Mergulhar nessas contradições é uma via produtiva tanto para repensar os escritos de Alencar, como para tentar entender como suas ideias ainda reverberam em nosso país - é uma obra importante para entendermos de qual forma essas ideias são compreendidas e realocadas diante dos contextos atuais, pois ela traz elementos que expandem elementos presentes em estudos já realizados sobre os escritos alencarinos. A obra de Alencar, de fato, não merece leituras impressionistas ou que a coloquem em lugares fixos. Acredita-se que nosso livro ratifique a necessidade de conhecer mais profundamente a complexidade e amplitude de sua obra, de modo a abrir novos caminhos de pesquisas. A possibilidade de descobrir e ler por novos ângulos os escritos de Alencar semeia potenciais trabalhos que podem romper a ideia de sua obra como engessada e ultraconservadora.

OP – Qual a contribuição de uma leitura e discussão de Alencar ao país no ano do bicentenário de nossa suposta independência?
Marcelo Peloggio – Nos dias de hoje, em que a expressão "soberania nacional" passou a frequentar o imaginário social e político brasileiro com alguma frequência, a visão de José de Alencar sobre o Brasil ganha uma coloração ímpar. Ela constitui a expressão do nosso primeiro grande pensador das questões nacionais, no espaço e no tempo, como de fato deve ser: profundamente meditada para revelar-se justamente aguda, ampla e por isso marcada, em rigor, pela sensatez. A soberania em Alencar foi, sem dúvida alguma, aquela de seu pensamento vivificador mas também que desafia (na ficção, na crítica, na teorização). A independência de suas ideias - e o autor de Iracema foi, de fato, um parteiro de ideias originais - é o exemplo máximo aos que desejam celebrar a nossa soberania política como o resultado de voos elevados, como devem ser os dos grandes tradutores da vida nacional, ao invés dos escassos ou rasos que vivem a assombrar, infeliz e insistentemente, a vida nacional.

OP – De que modo formular hipóteses sobre o pensamento romântico contribui para uma reflexão acerca de uma atual "desglobalização", fruto de crises pandêmicas e da ascensão de projetos políticos autoritários e sempre bélicos em todo mundo?
Marcus Vinicius Soares – Embora dominante em algumas esferas culturais, a vocação etnocêntrica do nacionalismo romântico não foi a única a ser desenvolvida pelos artistas e pensadores do romantismo. Especialmente no início, no contexto dos chamados "primeiros românticos" alemães, a vocação desses autores estava mais relacionada a uma expressão universal do que nacional da arte. Schlegel postulou, no famoso fragmento 116 do Athenaeum (1798), a ideia de uma "poesia universal progressiva". Goethe, já nas primeiras décadas do século XIX, apresentou uma reflexão a respeito do que ficou conhecido como "literatura universal" (Weltliteratur), reflexão que se deu a partir do contato que ele teve com a produção literária do Oriente, especialmente a poesia medieval persa, e que se materializou no livro Divã ocidental-oriental (1819) - orientalismo que, diga-se de passagem, também atingiu o poeta francês Victor Hugo, importante referência para a literatura brasileira oitocentista. No Brasil, Álvares de Azevedo foi um poeta que não se dedicou à escrita de obras nacionalistas; ao contrário, a sua produção sempre tendeu para uma internacionalização da poesia, como se pode depreender do ensaio que antecede a sua tradução do poema "Jacques Rola", de Alfred Musset. Mesmo José de Alencar, que manifestava grande interesse pela temática nacional, entendia que esta era constituída por aportes culturais diversos, uma dialética entre o próprio e o alheio que caberia aos artistas brasileiros expressarem em uma linguagem específica e, se possível, original. Na verdade, construir uma nacionalidade para boa parte dos intelectuais e letrados românticos consistia em tornar o país culturalmente apto a ingressar no consórcio mundial das nações civilizadas, e não em um gesto de isolamento autocentrado, de cunho xenófobo e ufanista, que me parece muito mais característico dos projetos nacionalistas do século XX, especialmente dos que deram origem aos modelos nazifascistas. Nesse sentido, refletir sobre certo romantismo hoje seria uma boa forma de se considerar a necessidade de estabelecimento ou manutenção de intercâmbios culturais nos quais as diferenças possam ser tomadas como parâmetros de entendimento das especificidades de cada cultura, numa espécie de globalização plural. Vale lembrar que a pandemia e os projetos políticos autocentrados são "globalizantes", porém uniformes: a pandemia nos lembra diariamente que não há fronteira nacional capaz de impedir a disseminação de uma doença transmissível; já esses projetos sempre tiveram como meta a expansão de fronteiras por meio da força, com o objetivo de disseminar outra doença, a da pretensa supremacia racial, intelectual e moral de um povo

OP – Como a sala de aula, para a qual Alencar é uma figura tão canônica quanto estereotipada, pode reinventá-lo? De que outras maneiras a Educação pode fazer ver faces novidosas do homem e da obra?
Washington Dener – Ainda que considerado canônico para a sala de aula, em especial na Educação Básica, José de Alencar e sua obra são atemporais. Podemos reinventá-lo e trazer para a sala de aula através de seu nacionalismo, diferente de patriotismo, que destaca as tradições dos povos originários por meio das diversas cenas descritas em suas obras indianistas. Não se trata apenas de colocar o "índio" como herói nacional, mas Alencar em suas obras indianistas indica, nos educa, sobre o valor da História, da presença dos Povos Originários, ainda que de forma romântica, não devemos esquecer o contexto da escrita do autor, porém foi fundamental para a definição de uma identidade nacional no campo da literário, asfaltando o caminho para a discussão que vai desaguar mais a frente sobre cultura brasileira. Ainda é necessário destacar que as obras de Alencar podem contribuir não somente no campo da Literatura e sua formação na Educação Básica, mas na Geografia uma vez que suas obras destacam o espaço com a descrição precisa dos locais das cenas de seus romances, com uma narrativa precisa dos locais e necessária para construção de uma história. Nessa perspectiva, a Geografia e a História dão um sentido, constroem um plano de fundo que nos permite identificar características de seus personagens e situações sociais em que estão envolvidos. Enfim, apesar de canônico, as obras de Alencar podem contribuir muito na Educação Básica no contexto atual do país diferenciando patriotismo de nacionalismo, como também a importância e necessidade de preservação e proteção dos Povos Originários para a compreensão do Brasil. 

Leia trecho de texto "disperso"

Confira trecho de "O hilota do Brasil", manuscrito de Alencar que permaneceu inédito até ser publicado na Revista Entrelaces, do programa de pós-graduação em Letras da UFC, em 2019

Quem és tu, irmão?

Tu, homem do povo, filho deste
abençoado solo americano,
o que és na terra de teu nascimento?

Um estrangeiro. Mais do que um estrangeiro, um servo.

És o hilota do Brasil.

Chamam-te cidadão brasileiro. É um escárnio daqueles que fizeram da cidade um ventre.

Para estes, cidadão quer dizer raiz donde
se extrai a fécula para o bolo do orçamento.

Genuíno cidadão, no sentido nobre da palavra, só hás de ser quando afinal compreenderes que o governo foi criado para servir ao país e não para gozar dele.

Brasileiro sim és, e muitas vezes; mais do que desejavas.

Quando? Bem o sabes tu.

És brasileiro quando carecem de sangue para as tertúlias imperiais do Paraguai.

És brasileiro quando te escorre o suor, vintém a vintém, para encher a bolsa aos que tomaram o Império de empreitada.

És brasileiro quando te puxam pelas ruas de arma ao ombro e mochila às costas,
com o rótulo de Guarda Nacional.

Quando te recrutam, prendem, humilham e despojam; então, sim, és brasileiro da gema.

Sofres tudo com resignação.

Mas se tens a veleidade de tomar ao sério o título, e queres intervir pela
opinião ou pelo voto nos negócios deste país, que dizem teu, riem-te ao nariz.

Se pedes a instrução e o exemplo, pão e água para o espírito da liberdade, respondem com o privilégio e o monopólio, esses dois pesados alforjes
que o pobre carrega para o rico.

Desengana-te, irmão; esta bela terra não é nossa, nem brasileira. Ainda pertence a Portugal; não deixou de ser colônia.

Que se vê a cada momento?

Enquanto vegetas aí num catre do hospital, cicatrizando as feridas ganhas em gloriosos combates e catando as migalhas de um soldo mesquinho, o capitalista luso

e seus sócios projetam empresas que teu governo liberaliza para fartá-los do ouro amassado com o sal de teu corpo.

Lançamento do livro "José de Alencar: dispersos e inéditos"

Quando: hoje, 13, às 18 horas
Onde: Palco do Pequeno do Centro Cultural Banco do Nordeste (Rua Conde d'Eu, 560 - Centro)
Entrada franca

O POVO+

Confira outros textos do colunista Lúcio Flávio Gondim no O POVO+. O professor e pesquisador escreve sobre educação, arte, comportamento, entre outros temas

Podcast Vida&Arte

O podcast Vida&Arte é destinado a falar sobre temas de cultura. O conteúdo está disponível nas plataformas Spotify, Deezer, iTunes, Google Podcasts e Spreaker. Confira o podcast clicando aqui

O que você achou desse conteúdo?