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30 anos de Manguebeat: a relevância do movimento para a cena cultural brasileira
Vida & Arte

30 anos de Manguebeat: a relevância do movimento para a cena cultural brasileira

Movimento Manguebeat, oriundo de Pernambuco, completa 30 anos em 2022. Personalidades repercutem a relevância da iniciativa para a arte brasileira
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Chico Science e Nação Zumbi despontou internacionalmente com o álbum
Foto: Divulgação Chico Science e Nação Zumbi despontou internacionalmente com o álbum "Da Lama ao Caos" (1994), que divulgava a sonoridade e estética da geração manguebeat

"O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, desbolotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife". Essa era a proposta para a capital de Pernambuco não morrer "de infarto", "esvaziando a alma" do centro urbano. A resolução foi divulgada no texto "Caranguejos com Cérebro", escrito pelo jornalista e cantor do Mundo Livre S/A Fred Zero Quatro, em julho de 1992. O material tinha como intenção a divulgação de bandas locais para a imprensa, porém acabou se tornando o primeiro manifesto do movimento Manguebeat.

"De início, era só um mero release que ia acompanhar uma fita demo que o Mundo Livre S/A e o Chico Science tinham preparado. A vantagem é que Fred é jornalista, tinha passado um tempo no jornal e estava de saco cheio de escrever texto formatado para a televisão. O release serviu como uma maneira dele escrever algo mais criativo e solto. A gente rejeitava esse rótulo de manifesto porque não era essa a função daquele texto e demandava uma seriedade, podia soar pretensioso", explica Renato Lins, ou Renato L, jornalista e um dos idealizadores do movimento - tido como o "ministro da informação da Manguetown" -. O escrito em questão enlaça a analogia entre o manguezal, um dos ecossistemas de Recife, e a urgência de uma cena que abrigasse a diversidade cultural na região. Para ilustrar a mensagem, o símbolo escolhido foi uma antena parabólica fincada na lama.

Esta agitação renasce em meio a um período de declínio econômico de Pernambuco. Recife, no ano de 1990, tinha sido considerada a 4ª pior cidade para se viver pelo Population Crisis Commitee, Instituto de Washigton D.C, nos Estados Unidos. O estudo foi desenvolvido com o parâmetro de desemprego e violência, além do enfraquecimento de políticas públicas. A cultura local, então, deveria buscar engrenar com a ‘cena mangue’, construída por uma mescla de elementos da cultura regional - como o maracatu e o coco - com componentes da cultura pop. A ideia era promover questionamento e revitalização do cenário cultural pernambucano, além de estabelecer um estilo capaz de impulsionar novas ideias.

"O release-manifesto chega nas redações, começa a circular na cidade simultaneamente a uma criação de shows e festas que essa cooperativa começa a fazer", desenvolve Renato. Ele relaciona a explosão do movimento com o crescimento das bandas Chico Science e Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, mas pontua que o movimento se estendia por outras extremidades. "No próprio grupo base do Manguebeat dos anos 90 você tinha um aglomerado de músicos, claro, mas pessoas de outras áreas, jornalistas, cineastas, artistas plásticos. Os ritmos que a gente gostava, como o hip hop, sempre tinham conexões com outras áreas", complementa. Com produtos ‘multi’, as manifestações do Manguebeat se destacam pela inovação - de instrumentos, letras e ideologias - e pela valorização cultural ao reintegrar Pernambuco no mapa da música brasileira. "Às vezes você não consegue decodificar a influência do Manguebeat na estética, mas se faz bem presente pelo tipo de energia, da força vital que o Manguebeat transmitia".

"Desde a geração da Música Popular Brasileira (MPB), com Alceu Valença e Geraldo Azevedo, esse pessoal que se consagrou na segunda metade dos anos 70 e 80, o universo do pop e do rock dos anos 90 ainda não tinha mostrado a cara", contextualiza o produtor cultural e primeiro empresário de Chico Science e Nação Zumbi, Paulo André Moraes Pires, também responsável pelo festival Abril Pro Rock. "Quando você olha as imagens dos primeiros shows do Abril Pro Rock, tem lá Kleber Mendonça Filho, futuro diretor de Cinema; tem a galera que formaria o Jorge Cabeleira, galera da Banda Eddie, os artistas visuais. Tava todo mundo lá. Conseguiu botar fogo na cena".

Ele acompanhou a banda responsável pelos sucessos "Maracatu Atômico" e "A Praieira" na gravação do primeiro disco, intitulado "Da Lama ao Caos" (1994). Em 2022, o álbum levou o título de melhor disco da música brasileira nos últimos 40 anos, viabilizado por enquete feita pelo jornal O Globo entre especialistas. "Ele foi ignorado pelas rádios. Ali ficou claro para mim que, infelizmente, capa de caderno de cultura de jornal ou música na novela, para uma banda nova, não alavanca carreira. A formação de público se deu pela circulação. Isso a gente não parou", considera. Ele sinaliza, inclusive, que o Ceará está "muito presente" na carreira de Chico Science & Nação Zumbi, e relembra causos de shows na Capital e no Cariri: "Nós formamos público. Fortaleza viu o antepenúltimo show da banda". Estas histórias, assim como as conquistas do grupo, serão descritas no livro "Memórias de um Motorista de Turnê", que será lançado em breve. "A gente vive num país sem memória, é muito fácil para você cair no esquecimento", justifica Paulo.

Homenagens e solenidades, distintas maneiras de reviver estas histórias, também são importantes para Renato, que frisa eventos como o Festival de Inverno de Garanhuns (FIG) e a Feira Nacional de Negócios do Artesanato (Fenearte). Ambos homenageiam o movimento na edição deste ano. "A gente desenvolveu um cuidado com o 'mangue' que até hoje, em relação ao aspecto mais conceitual. É bacana comemorar os 30 anos porque foi importante para a cidade e para o Brasil, é bacana a gente criar uma perspectiva histórica e deixar registrado tudo o que aconteceu. Tem muita gente mais jovem que não conhece e é importante para eles saberem o que aconteceu com tanta força. Quem sabe ainda traga ilusões e estratégias que sejam importantes", finaliza o jornalista.

Cantor e compositor Chico Science foi um dos principais colaboradores do movimento manguebeat em meados da década de 1990
Cantor e compositor Chico Science foi um dos principais colaboradores do movimento manguebeat em meados da década de 1990

Cidadão do Mundo

"Muitas pessoas me perguntam o que ele faria se fosse vivo, para mim é inimaginável. Eu só sei que ele seria um cara que ia estar numa movimentação nas redes sociais, certamente teria se tornado um produtor de novos artistas e estaria criando a própria música. Ele teria um apartamento em alguma cidade do mundo, onde iria passar uma temporada", opina Paulo André ao relembrar a trajetória do amigo e companheiro de profissão Francisco de Assis França, ou simplesmente Chico Science. O "cidadão do mundo" se tornou a cara do movimento Manguebeat, mas faleceu em um acidente de carro em fevereiro de 1992, há 25 anos. 

"Além dele ter chegado como uma explosão no Brasil todo, ele resgatou a música regional. Ele foi atrás dos mestres esquecidos no passado e também fez com que muitos jovens pudessem mostrar seu trabalho", opina Fábio Cabral, mais conhecido como Fábio Passadisco, dono da loja Passadisco. Ele afirma que, se não fosse pelo cantor, espaços como o dele provavelmente não existiriam. "Era tudo o que a gente queria ouvir, Pernambuco não tinha representatividade. É muito difícil, fora do eixo Rio e São Paulo, ter uma loja de produtos locais. Tudo isso é fruto de Chico Science, ele é divisor de águas para sempre. Duvido que alguém revolucione como ele revolucionou, de maneira tão rápida e sem internet, no boca a boca".

Cantor e compositor Chico Science foi um dos principais colaboradores do movimento manguebeat em meados da década de 1990
Cantor e compositor Chico Science foi um dos principais colaboradores do movimento manguebeat em meados da década de 1990 (Foto: Divulgação )

O estrelato do pernambucano foi intenso, meteórico. Ele está no 16ª lugar dos Cem Maiores Artistas da Música Brasileira, lista divulgada pela revista Rolling Stone. Com Chico, a Nação Zumbi conquistou versões de "Da Lama ao Caos" em inglês e japonês; configurou posição entre os três artistas brasileiros na enciclopédia da Virgin Records e esteve entre os dez álbuns mais ouvidos das rádios de world music da Europa, segundo o World Music Charts Europe. Para Renato L., tamanha relevância se constrói em três pilares. "Ele quem veio com essa ideia de usar o termo mangue ligado a cultura. Era extremamente talentoso, um ótimo performer e letrista, tinha capacidade de transitar por estilos musicais diversos, queria fazer hardcore, coco, rap, misturar tudo. Também acho que pela maneira trágica como ele faleceu, tudo isso ajudou a transformá-lo num mito", destaca.

 

Mangueboys e manguegirls

Antes mesmo do mundo entrar na era do digital, a Nação Zumbi rascunhava passos tecnológicos com letras como "Mateus Enter" (1994). Na composição de "Monólogo ao Pé do Ouvido" (1994), por exemplo, Chico aposta que "modernizar o passado é uma evolução musical". Entre as referências, traz os nomes de Zapata e Antônio Conselheiro, garantindo que "eles também cantaram um dia". Nas demais atuações do Manguebeat, se desenhava os contrastes de Recife e se pensava novas formas de fluxo dos habitantes. Com inspiração em expressões tradicionais, como o bloco Lamento Negro, o movimento se tornou terreno fértil para novos nomes.

Além de Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, a cena inicial também contou com Mestre Ambrósio, Bonsucesso Samba Clube, Sheik Tosado e Jorge Cabeleira e o Dia Que Seremos Todos Inúteis. As batidas também inspiraram integrantes da Sepultura; cineastas como Kleber Mendonça Filho e compositores, a exemplo de Arnaldo Antunes e Chorão. Em gerações mais recentes, as influências aparecem nos trabalhos do Cordel do Fogo Encantado, Mombojó, Banda Eddie e mais. A obra do cantor Jáder, natural de Recife, revela esta intervenção versátil da cena mangue, presente desde as apresentações de escola. "Tem uma penetração que a gente vê na vida, acabou sendo muito marcante na minha carreira. É uma referência principalmente no desdobramento da cadeia produtiva, levou a música pernambucana para o mainstream", defende.

 

Do caos à lama

O marco do movimento é destaque no 30º Festival de Inverno de Garanhuns (FIG), em Pernambuco, que acontece desde o dia 15 de julho e segue até o dia 31. O show "Manguefonia" aconteceu na última quinta-feira, 21, e teve a participação de nomes como Zero Quatro e Mundo Livre S/A, Jorge Du Peixe e Dengue.

Movimento também foi homenageado na Feira Nacional de Negócios do Artesanata (Fenearte) 2022, em Recife. O evento é um dos maiores do setor no País e reuniu mais de cinco mil expositores. A programação contou com salões de arte, oficinas gratuitas, rodas de conversas, shows e mais.

Em homenagem ao legado de Chico Science, cuja morte completou 25 anos em 2022, o Governo do Estado de Pernambuco renomeou o Teatro Guararapes, em Recife, como Teatro Guararapes Chico Science.

O documentário "Manguebit" (2022) traz depoimentos dos criadores do movimento que trouxe mais visibilidade para as periferias e manifestações culturais de Recife. O filme foi o vencedor do 14º In-Edit Brasil - Festival Internacional do Documentário Musical e foi exibido na edição do In-Edit Barcelona de 2022, com a presença do diretor Jura Capela.

"Da Lama ao Caos" (1994), álbum de estreia de Chico Science & Nação Zumbi, foi eleito o melhor disco do Brasil nos últimos 40 anos. O título veio de uma enquete feita pelo jornal O Globo com 25 especialistas em todo o País.

Tema foi inspiração para livros como "Manguebeat" (2017), de Júlia Bezerra e Lucas Reginato; "Manguebeat: a cena, o Recife e o mundo", escrito por Luciana Ferreira Moura Mendonça; e "Memórias de um Motorista de Turnês", que será lançado em breve pelo produtor Paulo André Moraes Pires.

 

"Caranguejos com Cérebro"

Confira o manifesto "Caranguejos com Cérebro", escrito pelo cantor e jornalista Fred Zero Quatro, na íntegra: 

"Mangue, o conceito.

Estuário. Parte terminal de rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas margens se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou subtropicais inundadas pelos movimentos das marés. Pela troca de matéria orgânica entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre os ecossistemas mais produtivos do mundo.

Estima-se que duas mil espécies de microorganismos e animais vertebrados e invertebrados estejam associados à vegetação do mangue. Os estuários fornecem áreas de desova e criação para dois terços da produção anual de pescados do mundo inteiro. Pelo menos oitenta espécies comercialmente importantes dependem do alagadiço costeiro.

Não é por acaso que os mangues são considerados um elo básico da cadeia alimentar marinha. Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas, inimigos das donas-de-casa, para os cientistas são tidos como símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza.

Manguetown, a cidade

A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis rios. Após a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex)cidade *maurícia* passou desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição de seus manguezais.

Em contrapartida, o desvairio irresistível de uma cínica noção de *progresso*, que elevou a cidade ao posto de *metrópole* do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade.

Bastaram pequenas mudanças nos ventos da história, para que os primeiros sinais de esclerose econômica se manifestassem, no início dos anos setenta. Nos últimos trinta anos, a síndrome da estagnação, aliada a permanência do mito da *metrópole* só tem levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos urbano.

Mangue, a cena

Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruindo as suas veias. O modo mais rápido, também, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.

Em meados de 91, começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo era engendrar um *circuito energético*, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama.

Hoje, Os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em hip-hop, colapso da modernidade, Caos, ataques de predadores marítimos (principalmente tubarões), moda, Jackson do Pandeiro, Josué de Castro, rádio, sexo não-virtual, sabotagem, música de rua, conflitos étnicos, midiotia, Malcom Maclaren, Os Simpsons e todos os avanços da química aplicados no terreno da alteração e expansão da consciência.

Bastaram poucos anos para os produtos da fábrica mangue invadirem o Recife e começarem a se espalhar pelos quatro cantos do mundo. A descarga inicial de energia gerou uma cena musical com mais de cem bandas. No rastro dela, surgiram programas de rádio, desfiles de moda, vídeo clipes, filmes e muito mais. Pouco a pouco, as artérias vão sendo desbloqueadas e o sangue volta a circular pelas veias da Manguetown".

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