"O sertão vai virar mar", profetizou Antônio Conselheiro (1830-1897), cearense de Quixeramobim, nos idos de 1833, em peregrinação que culminou na fundação do Arraial de Canudos, na Bahia. Mais de 160 anos depois, no início dos anos 2000, a população da cidade de Jaguaribara, na região do Vale do Jaguaribe do Ceará, presenciou algo semelhante. A partir da construção da barragem do Açude Público Padre Cícero, o Castanhão, milhares de pessoas viram "um mar" de água doce tomar conta de suas casas, das calçadas onde conversavam ao cair do dia e da igreja que recebia suas preces.
Aquele território, que se convencionou chamar de "Velha Jaguaribara", foi inundado pelo reservatório que prometia recursos hídricos e desenvolvimento sustentável para o Estado. Com a seca no Ceará na segunda década do milênio, as ruínas do lugar e os rastros de quem vivia por ali - e foi deslocado para uma cidade planejada homônima, com o slogan "Nova Jaguaribara" - apareceram em meio às águas. No fotolivro "Lágrima", o fotógrafo e professor cearense Fernando Jorge documenta essa "cidade que emerge". O lançamento acontece nesta terça-feira, 26, às 19h30min, no Teatro Dragão do Mar, com uma conversa sobre os processos artísticos do ensaio, seguida de sessão de autógrafos. O livro pode ser adquirido no evento (R$ 100).
Em 63 fotografias, realizadas entre 2015 e 2020, a publicação mostra uma habitação que não é mais morada e um reservatório de água que, ao mesmo tempo, também não pode ser visto como tal. Assim conta o autor ao O POVO. Com muitos dos registros realizados em filme vencido, "Lágrima" apresenta uma Jaguaribara em ruídos, a partir do olhar de Fernando Jorge. A estética das imagens, beirando uma dimensão fantasmagórica, parecem dar conta de algumas aflições - dentre elas, o contraste de ver os resquícios de uma cidade evacuada para a construção de um açude, e inundada por 6,7 bilhões de metros cúbicos (m³) de água alguns anos depois, retornando à vista em meio à solidão e à aridez.
Quando a construção da barragem do Castanhão foi anunciada, na década de 1990, Fernando Jorge estudava Comunicação Social na Universidade Federal do Ceará (UFC). Ele conta que, à época, especialistas criticaram "a obra faraônica" e seus impactos sociais na imprensa cearense. O território da antiga Jaguaribara ficou escondido pelas águas do reservatório até o início dos anos 2010. Conforme os anos de seca se passavam, as estruturas da cidade foram aparecendo aos poucos. O baixo nível do reservatório chamou atenção da imprensa novamente, recorda Fernando, hoje professor da Casa Amarela Eusélio Oliveira.
Instigado pelas notícias, em 2013, o fotógrafo decidiu conhecer o cenário. Foi sozinho, em direção à velha Jaguaribara, distante a cerca de 230 quilômetros de Fortaleza. Na região, conheceu as pessoas que protagonizaram as histórias por trás daquelas ruínas. "Na primeira vez, ainda tinha relativamente bastante água", compara. A partir da visita, ele observou: números de casas, pias, paredes, sanitários, ladrilhos, postes e azulejos, que indicavam a presença humana noutro tempo, se misturavam ao ecossistema da represa.
Munido com sua câmera, Fernando retornou ao Castanhão em 2015. "A paisagem já era diferente, o nível de água já estava bem mais baixo". Ele fez cerca de 15 viagens durante cinco anos. Desse percurso documentado no fotolivro, o fotógrafo destaca "as questões sobre a passagem do tempo e a questão da água, um ponto muito sensível aos cearenses e ao Nordeste". "Toda vez que eu vou é um cenário diferente, uma situação diferente", verifica.
"Morada é identidade, pertencimento, memória, cultura. Imagina uma pessoa que morou uma vida inteira, 60, 70 anos, num lugar, e de repente tem que sair daquela rua, daquela casa, de onde seus familiares foram sepultados. Há uma questão sensível sobre identidade e memória"Fernando Jorge, fotógrafo e professor
"A população passou por esse processo arbitrário de deslocamento para a construção do açude. Poucos anos depois, cadê o açude?", questiona Fernando.
O fotógrafo explica o conceito do ensaio "Lágrima". "Muito do que está ali como estética tem a ver com esse fato de o suporte fotográfico estar vencido". Esse aspecto, inclusive, é constante no trabalho de Fernando Jorge, que já participou de mostras como Salão de Abril, Unifor Plástica, Solar Foto Festival e já foi contemplado com o Prêmio Chico Albuquerque de Fotografia. Fazia sentido, para o autor, retratar um espaço que, teoricamente, "não existiria, estaria expirado ou deveria estar sob água", com um suporte fotográfico que "passado o seu primor técnico, não deveria mais ser utilizado".
Lançamento
O que: “Lágrima”, fotolivro de Fernando Jorge
Quando: terça-feira, 26, a partir das 19h30min
Onde: Teatro Dragão do Mar (rua Dragão do Mar, 81 - Praia de Iracema)
Quanto: R$ 100 (no evento)
Mais info: @efejota12 no Instagram
Entrada sujeita à apresentação do passaporte da vacinação Covid-19, acompanhado de documento oficial com foto
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