Scholastique Mukasonga, escritora ruandesa, radicada na França desde 1992, publicou seu primeiro livro, "Baratas", em 2006, para contar os horrores vividos em Ruanda, quando os hutus assassinaram cerca de 800 mil tutsis, no genocídio de 1994.
Mukasonga perdeu 37 pessoas da família durante o massacre: pais, irmãos, sobrinhos, cunhados, tios. Dos filhos de Cosmas, apenas ela e o irmão Andre, conseguiram sobreviver, por teimosia do pai. Foram os únicos que, muitos anos antes, fugiram do cerco dos hutus em Nyamata, onde os tutsi foram exilados dentro do território ruandês, a partir dos anos de 1970. Cosmas insistiu que os filhos fugissem para Burundi e seguissem os estudos. Ela queria ser Assistente Social; Andre tornou-se médico.
Em 2004, Scholastique retornou à Ruanda após o longo processo de pacificação, e escreveu o primeiro livro que narra a história do genocídio ruandês. A obra fez imenso sucesso na França, foi traduzida para vários países e transformou Scholastique numa escritora contemplada com diversos prêmios literários.
No Brasil, a escritora já lançou vários títulos e vive um caso de amor com o País, onde constata o crescimento de leitores. "Já disse no jornal ‘Liberation’ que se Joséphine Backer cantou que teve dois amores, eu tenho três: meu país, Ruanda, França e Brasil”, afirmou Scholastique, nesta entrevista por e-mail ao O POVO. A tradução para o português foi revisada pelo professor de francês, Milton Dias.
O POVO - Sua obra tem suscitado muito interesse do público brasileiro. Você já esteve no Brasil participando de eventos literários. Que impressões a senhora guarda desses encontros e do País?
Scholastique - Fiz três viagens literárias ao Brasil. Em 2018, fui convidada a Paraty para a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Jamais esquecerei a acolhida que recebi ali! A tenda (com telão) e a igreja lotadas, mais de 800 pessoas, segundo me disseram. A sessão de autógrafos durou das 21h à 1 hora da manhã. No dia seguinte, como a sala era muito pequena, o evento continuou na rua. Muitas vezes penso no meu encontro com Lula, que me disse: “O Atlântico é apenas um riacho entre o Brasil e a África”.
Minhas duas outras estadas me levaram a Tiradentes, Maringá, Contagem, à Universidade de São João del Rey, a Porto Alegre, a São Paulo à Biblioteca Mário Andrade e ao Sesc Pompeia. Em todos os lugares encontro o mesmo fervor. No Rio, abracei Marineta da Silva, mãe de Marielle Franco, e tive uma longa conversa com a escritora Conceição Evaristo.
Já disse no jornal "Liberation" que se Joséphine Backer cantou que teve dois amores, eu tenho três: meu país, Ruanda, França e Brasil. Minha viagem planejada ao Nordeste foi adiada por causa da Covid-19, mas meus vínculos com os leitores brasileiros não estão esquecidos. Todos os dias, na web, descubro um livro meu apresentado por um leitor ou clube do livro com uma decoração cheia de inventividade e humor.
O POVO - A senhora transformou suas memórias e as de sua família em literatura. Enquanto lemos "Baratas", "A mulher de pés descalços", "Um belo diploma" e "Nossa Senhora do Nilo", às vezes, temos a impressão que os textos estão nos limites dessa memória. A senhora sente que alcançou esses limites ?
Scholastique - Existem limites para a memória? É para preservar esta memória e a memória das vítimas do genocídio tutsi que caíram no anonimato das valas comuns que comecei a escrever. Era meu dever: erguer uma tumba de papel para aqueles que permaneceriam insepultos. Se os meus últimos livros, "Kibogo est monté au ciel" e "Sister Deborah", que será lançado na França em outubro, se desviam das minhas memórias pessoais, é porque eles querem contribuir para a memória coletiva do povo ruandês cuja história há muito tempo tem sido falsificada por ideologias racistas e coloniais. Mas estou certa de que um dia voltarei à minha primeira fonte de inspiração: minha infância no exílio em Nyamata.
O POVO - A repercussão do livro "Baratas" impulsionou os outros livros que a senhora publicou? Ou a senhora tinha um projeto literário ?
Scholastique - "Inyenzi" ou "Baratas" tem despertado o interesse de leitores e críticos. Isso me incentivou a continuar escrevendo. Sem que eu soubesse, havia me tornado uma escritora.
O POVO - No livro "A mulher de pés descalços", a senhora narra muitas tradições das mulheres ruandesas. Como é viver numa cultura tão diferente e ainda guardar muitos desses ensinos tradicionais ?
Scholastique - Era papel das mães transmitir as tradições adaptando-as às mudanças para o bem dos filhos. Isso é o que Stefania faz em A Mulher de pés Descalços. Jovens ruandeses aculturados pela educação ocidental pedem para se reconectar com o passado que muitas vezes ignoram. Também é meu papel como escritora ruandesa transmitir a eles o que minha mãe me transmitiu.
O POVO - Em "Um belo diploma", um dos trechos mais emocionantes trata das suas memórias sobre seu pai, Cosmas, e sua busca pelos vestígios da vida desse homem. Foi muito difícil para a senhora lidar com essa memória ?
Scholastique - Foi meu pai quem salvou minha vida ao exigir, apesar da minha relutância, que eu fosse para a escola e obtivesse esse famoso “belo diploma”. Uma filha segue os passos da mãe. As atividades do pai, “ministro das Relações Exteriores da família” permaneceram misteriosas por muito tempo.
O POVO - No livro "Nossa Senhora do Nilo", diferente dos outros, não foi narrado em primeira pessoa. Por que a senhora considerou necessário esse distanciamento?
Scholastique - Sim, "Nossa Senhora do Nilo" é em grande parte baseado em minhas memórias da escola Notre-Dame de Citeau, em Kigali. Foi lá que experimentei a violência da discriminação, sozinha, contra meus colegas hutus, porque, se em Nyamata, a violência sempre esteve presente, ela foi compartilhada por toda a comunidade de exilados. A forma do romance me deu a distância necessária para abordar assuntos maiores. E então, "Nossa Senhora do Nilo" é um romance “polifônico”: não se baseia em uma única heroína, mas em vários personagens contrastantes em suas posições e atitudes. O ensino médio imaginário é o microcosmo de Ruanda na década de 1970, um prelúdio distante do genocídio.
O POVO - Em "Baratas", a senhora revela como o regime hutu utilizou um sistema de comunicação por rádio para propagar o ódio contra os tutsis e armar as pessoas para o massacre de 1994. A senhora considera que os movimentos de ódio nas redes sociais fragilizam a democracia ?
Scholastique - Durante o genocídio tutsi em 1994, era uma estação de rádio, a Radio des Milles Collines, que conclamava os assassinatos. Os idealizadores do genocídio foram também os precursores do massacre. Como encontrar um equilíbrio entre a liberdade de expressão e a repressão ao ódio e ao racismo? Eu não tenho a resposta.
O POVO - As eleições deste ano na França, tanto para presidente como as legislativos mostram o avanço dos partidos de extrema direita francesa. Isso a preocupa ?
Scholastique - Os resultados das últimas eleições legislativas são certamente preocupantes. Mas me recuso a acreditar que tantos franceses sejam racistas. A onda populista da qual o Brasil infelizmente foi vítima atinge muitos países. Aquecimento global, Covid-19, guerra na Europa a dois dias de carro da minha casa, o futuro pode parecer muito sombrio. Eu não teria chegado onde estou se meu lema não tivesse sido sempre; “apeguemo-nos à esperança!"