"Vou salvar a postagem porque o prédio foi demolido e ficou só a foto", escreveu uma seguidora em uma publicação do perfil "Fortaleza Sem Memória". Com mais de 17 mil seguidores, a página funciona como acervo virtual de espaços históricos da Capital - ao menos os que tiveram tempo de ser registrados. Neste 17 de agosto, Dia Nacional do Patrimônio Histórico, entenda como a tecnologia e as mídias sociais podem auxiliar na manutenção da memória e na luta pela preservação do patrimônio.
Tudo começou em 2017, quando o ilustrador Julião Júnior pedalava pela ciclovia rumo ao trabalho e passou por algumas casas que tinham a arquitetura do século passado. "Nesse percurso, passei por uma casa que sempre ficava observando, tinha um estilo meio belga, bem europeu, e eu vi que estavam fazendo uma reforma, mexendo bastante na estrutura da casa. Aí pensei 'caramba, deixa eu guardar aqui pra ver como era'", relembra.
O ato de fotografar virou hábito e, sem muita pretensão, Julião passou a guardar os registros. "Eu fotografava para ter essas casas comigo. Na época, estava fazendo um curso em que o projeto era fazer um filme e eu era o responsável de fazer as ilustrações, então eu fotografava para ter referências para o projeto", conta. Até que decidiu postar nas redes sociais, "eu guardei aquela imagem e fiz um post no Instagram e até então minha conta era pessoal, publicava os desenhos e fotos, algo bem comum. Foi o post que tive mais retorno".
À medida que fazia as publicações, o número de seguidores aumentava. Grande parte motivada pela curiosidade e memória afetiva que as imagens carregam. "Essas fotos buscam remeter uma memória dentro de cada um, gosto de pensar que em algumas dessas casas as pessoas se veem, veem seus avós, seus pais, momentos felizes ou tristes, isso está guardado dentro da sua Fortaleza pessoal", define.
Já o nome "Fortaleza Sem Memória" veio da visão crítica de Julião às mudanças que observava, como explica. "O nome eu estava tratando de uma forma mais crítica, que as pessoas passam por cima de uma construção, acabam com a história dela e deixam uma cidade sem memória". "Hoje, no 'Fortaleza sem memória', eu busco mais a pesquisa em cima da memória do que propriamente do patrimônio, porque é na memória que a gente guarda tudo isso", completa.
Julião não imaginava que o projeto teria as proporções atuais. "Tem gente que faz pedido 'queria ver minha casa, casa em que morei na infância', uma senhora me mandou essa semana e eu prometi que iria fazer. Tem muita gente do interior também", diz o ilustrador. Ano passado, ele começou a postar fotos de outros municípios cearenses, enquanto fazia uma viagem ao Cedro. Desde então, mais pessoas têm se engajado em mandar seus registros para a página, "nesse período vi um crescimento vertiginoso do perfil e a partir daí as pessoas do interior começaram a me mandar também". Para ele, a iniciativa se tornou uma plataforma de pesquisa sobre Fortaleza, além de um "presente" seu para a Cidade.
"É um trabalho que fica para a Cidade, mesmo que eu me vá, isso fica. Como uma plataforma de pesquisa de Fortaleza e seus costumes, muitas histórias que conto lá são histórias que eu também não vivi, mas me imaginei, influenciado por leituras", diz ele, que também escreve mini crônicas regionalistas nas legendas das imagens. "Não tenho a intenção de discutir a arquitetura da cidade, o patrimônio sim, material e imaterial", completa.
Para ele, a responsabilidade sobre os patrimônios deve ser dividida entre diferentes agentes da sociedade. "A gente pode até culpar o Estado, mas ele não tem domínio de tudo. Tem aquelas casas que as pessoas moram há muito tempo e não conseguem mais fazer manutenção", exemplifica.
Professor de História da rede pública e particular, Sandoval Matoso é um dos seguidores da página. Ele avalia que a iniciativa contribui para a educação patrimonial. "Os projetos que utilizam as mídias sociais para inquietar a população, revelar as questões patrimoniais, como o "Fortaleza Sem Memória", o "Fortaleza Antigamente", entre outros, fazem com que a gente passe a vivenciar, perceber, esses bens que Fortaleza tem e que são de todos", pontua.
Além das salas de aula, Sandoval promove passeios guiados no Centro da Cidade, por meio do projeto "Vem comigo", uma forma de levar fortalezenses e turistas a mergulharem na história do município. "Esse cuidado com o patrimônio parte de um conhecimento e um reconhecimento, de uma relação de pertencimento", reflete. "Entendo a cidade como uma sala de aula e os patrimônios como livros, que nós podemos consultar, criticar, reconhecer e tomar posse", define.
"Falando de Poder Público, a política mais famosa que temos é do tombamento, onde o patrimônio é protegido e tutelado pelo IPHAN", explica o professor. Para além de tombar, "o papel do Estado é promover o acesso a esses lugares, não adianta ter um bem tombado se ele está fechado. É necessário divulgar, fomentar e trazer a população para perto", alerta.
Patrimônio e memórias em perfis no Insta
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