Na Paris de 1947, o postal recebido permaneceu longo tempo entre as mãos do pintor. O olhar do jovem artista passeava pelos detalhes daquela paisagem. Não era o desafio da descoberta que o movia, mas antes o prazer do reencontro com o universo familiar. Enquadrado pelos limites do cartão, o sol banhava três coqueiros longilíneos. O vento que os agitava era o mesmo que fazia duas jangadas deslizarem no horizonte dado pelo azul do mar. Habituada a formar dunas, a areia fina também estava lá. Antonio Bandeira sentia em turbilhão todos os afetos que a imagem do amado litoral distante provocava. Para ele, mesmo a sedução exercida pela vida na capital francesa era incapaz de deter o sentimento de nostalgia que o invadia.
Tocado pela emoção, o artista pegou uma folha ao acaso e desenhou rápido, agarrando-se a cada elemento que o ajudasse a fixar aquele instante fugaz. As linhas o socorreram na criação de um mundo reflexo, despido da pulsão das cores presentes na beleza da praia fotografada. A versão traçada retinha ao menos a estrutura das coisas vistas, revelando o pensamento compositivo do pintor, capaz de perceber não só objetos neles mesmos, mas suas relações.
O Bandeira da década de 1940 carregava em si, apenas em germe, a disposição para as formas abstratas. Aos 24 anos, ele desenhava e pintava febrilmente casas, cidades, paisagens e autorretratos de feição expressionista. Naquela época, ele recorria à figuração para fortalecer suas lembranças, gravando no espírito de maneira indelével sua versão daquilo que vira. Porém, o pintor sentia que faltava algo no postal desenhado, apesar do elo que ele tecera entre o desenho da paisagem e sua memória.
Assim, a sensibilidade gráfica de Bandeira exigia acréscimos. Ela guiou não só sua expressão no desenho figurativo, mas também na escrita, ao inserir na paisagem elementos do universo discursivo. A parte superior da folha foi então ocupada por uma frase descritiva, feita de próprio punho, para revelar o caráter referenciado da paisagem desenhada: "Cópia de um cartão postal de ano novo do meu querido Ceará". Em seguida, ao contrário do que faria em um esboço, Bandeira afirmou aquele como um ato autoral, trazendo para a imagem sua assinatura datada.
Bandeira não ignorava que, ao longo do percurso histórico trilhado pelas formas plásticas, o potencial narrativo da figuração foi reforçado pela aliança entre pintura e cultura escrita, fazendo muitas vezes irromper no espaço pictórico palavras ou frases que pretendiam regrar a interpretação da imagem. Essas trocas entre imagem e texto foram bem exploradas pelo pintor. No canto inferior da página desenhada, ele ainda escreveu uma frase poética feita para provocar a associação entre imagens: "A alegria nos coqueiros acenando pros trágicos homens do mar".
As frases "desenhadas" pelo artista ainda ecoam naqueles que as leem hoje, tanto quanto o desenho "inscrito" sobre o papel. Amarelado pelo tempo, o modesto suporte permanece vivo, ligando imagem e texto, leitura e escrita, apreciação visual e apreciação textual, modos de pensar e figurar pela escrita e pela palavra, sentidos evocados pelo discurso informativo e por aquele de caráter poético...
Bandeira criava regularmente poesias tecidas de vida. Nelas, o verbo respirava o tempo poético especialmente moldado pela emoção do artista, fazendo-se não poucas vezes leve passagem entre palavras, sentidos e imagens.
Duas décadas depois, o tempo acumulado definiu e universalizou seu estilo abstrato, atravessado por experimentações, inclusive com materiais os mais banais. Naquele período, para o pintor Antonio Bandeira, nada era mais cotidiano do que a leitura de jornais impressos.
Assim, na São Paulo de 1960, páginas do Correio da Manhã estiveram entre as mãos do artista antes de sofrerem o efeito alquímico da pintura. Em uma composição cuja assinatura tornou-se o próprio estilo, vermelhos e azuis recobriram o texto jornalístico, provocando um jogo de alternâncias entre cores pintadas, fotos, manchetes e artigos em colunas. Convertido em espaço pictórico, o texto impresso viu recuar sua relação com a leitura. O ato de leitura, outrora tão necessário à compreensão das nostálgicas linhas manuscritas sobre o postal desenhado nos anos 1940, transformou-se em apreciação visual da imagem quase decorativa da página impressa e pintada na década de 1960. Magias dos "Papéis de Bandeira"...
* Kadma Marques é socióloga da arte, curadora, coordenadora da Coleção ARTES (Obras e trajetórias de artistas cearenses), professora e pesquisadora (PPGS / UECE) e colunista do Vida & Arte.
Exposição "Os Papéis de Bandeira"
Quando: Abertura dia 18 de agosto, às 18h30min
Onde: Galeria Sculpt (Rua Paula Ney, 650- Fortaleza)
Instagram: @sculptgaleria
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