"Quem diria, os muitos que eu sou e nem sabia, sequer desconfiava. De repente, se a gente prestar atenção aos vários papéis que desempenhamos durante o dia e a vida, perceberemos espantadíssimos que uma verdadeira multidão reside em cada um de nós". Em texto publicado pelo O POVO em janeiro de 2003, o poeta, contista e cronista Airton Monte (1949 - 2012) revela algumas de suas múltiplas facetas. Rememora o diploma de Medicina e o período no catolicismo, mas se considera "o mais tímido dos anárquicos pátrios". É pai e filho, cearense afeiçoado pela "cidade louramente desposada de sol", o que não o impede de manifestar indignação pelas contrariedades injustas de Fortaleza. Também é personagem e narrador, ator e plateia, "sócio da vida". Nas últimas linhas, destaca a função como cronista do caderno Vida&Arte, profissão atravessada pelo "transitório e efêmero".
Escreveu diariamente nas páginas do jornal entre a década de 1990 e o ano de 2012, uma produção contínua feita em meio aos cadernos pautados e guardanapos de bares. Assinou o último texto no dia oito de agosto, nomeado "Domésticos Percalços", no qual passeava por um domingo qualquer cotidiano. Pouco mais de um mês depois, há exatos dez anos, Airton faleceu em decorrência de um câncer no fígado. "Às vezes quando você conhece um escritor, fica a curiosidade de onde está aquele movimento todo que você lê no jornal, onde se encaixa naquela pessoa. O Airton era a pessoa que ele escrevia, é capaz de ouvir ele contando aquelas histórias. Ele não falava da literatura como uma coisa majestosa, ele fazia a dele. A gente se encantava pelo o que ele dizia e como ele dizia", indica o escritor, produtor cultural e gerente editorial da Fundação Demócrito Rocha (FDR), Raymundo Netto.
Como muitos, Raymundo conheceu Airton pelas crônicas ou, como prefere pontuar, pelo "ato heróico de escrever todos os dias". Entretanto, ele frisa o início da carreira do profissional como contista - a partir da publicação do livro "O Grande Pânico" (1979) - e o viés poético do cearense. Entre os temas mais corriqueiros nos textos de Airton, Raymundo lista a relação com a Capital, a casa e o núcleo familiar, por exemplo. "A maior parte das pessoas quando falam de Fortaleza falam com amor e ódio. O Airton tinha saudosismo, voltava muito ao passado. Contava histórias da família, era um grande admirador do pai dele. Ele também falava de sentimentos, do amor, da perda, da morte, das dificuldades do dia-a-dia. Ele era muito variado, nem poderia ser diferente, passava por questões da própria humanidade, fugia para as incompreensões com o mundo".
Dez anos sem Airton Monte: cronistas reverberam a relevância do escritor cearense
Os escritos do cronista transformam em inspiração os acontecimentos banais, assim como oferecem protagonismo aos personagens comuns. As narrativas falam sobre os mendigos nas praças da Gentilândia, os novos casais nos bares ou os amigos da Praia de Iracema. Muitas das figuras são, inclusive, companheiros da vida real. É o caso do Moita, colega descrito como "muito exaltado" em entrevista de 1997 ao O POVO, ou o Newton, um "libanês gente boa". O escritor constrói camadas de personalidades e inventa novos ares, ao mesmo tempo em que mescla tópicos íntimos e universais. "Ele era uma pessoa inteligente, cativante. Essencialmente na crônica dele havia muita poesia, tinham crônicas que eram fantásticas e era só ele ali, sentado em casa. O Airton tem uma riqueza monstruosa de texto", complementa Raymundo.
Nas Páginas Azuis do O POVO de 2007, Airton afirma que considera a escrita um ato solitário. Entretanto, argumenta que manteve boa relação com as gerações mais antigas e mais jovens, sendo uma pessoa que trafegava entre "católicos, crentes, ateus, políticos de esquerda e de direita". Em relação à velhice e incertezas futuras, detalha que guardava o medo de se tornar obsoleto. "Ele é um nome inesquecível. Até hoje eu vejo menções de leitores que dizem que o O POVO perdeu muito sem o Airton. Ele deixou uma geração viúva", opina Raymundo.
Caminhos cruzados
Antônio Airton Machado Monte nasceu na capital cearense em 16 de maio de 1949, "de parto normal, filho do primeiro amor e do primeiro descuido". A criação ocorreu no declarado "território mágico" da rua Dom Jerônimo, no bairro Benfica, e nos arredores da Gentilândia, Otávio Bonfim e Parque Araxá. Foi alfabetizado em casa pela avó paterna, Dona Maroca, e concluiu os estudos no Colégio Padre Champagnat, onde participava do Clube dos Poetas Cearenses. Conseguiu o diploma de Medicina pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e atuou como psiquiatra em instituições como o Mira y Lopes e o Hospital de Saúde Mental de Messejana.
Como escritor, começou a publicar textos durante a década de 1970, nas revistas Etc. e O Saco. Ao lado de Rogaciano Leite Filho, foi um dos fundadores do grupo literário Siriará. O autor colecionou títulos de contos como "O Grande Pânico" (1979), "Homem Não Chora" (1981), "Alba Sanguínea" (1983) e "Os Bailarinos" (2010). Ele também participou de coletâneas como "Os Novos Poetas do Ceará III" e "Antologia da Nova Poesia Cearense". Já na década de 1980, integrou o suplemento Pixote, considerado um grande aprendizado para a carreira como cronista. Airton colaborou diariamente nas páginas do O POVO e também fez passagens como roteirista de televisão e comentarista de rádio, assim como escritor de peças de teatros. O cearense era fã de futebol, principalmente do Fortaleza, Botafogo e da Seleção Brasileira. Admirava São Francisco, ou "Chiquinho", quem considerava um revolucionário. Em destaques mais singelos, foi esposo de Sônia e pai de Bárbara e Pablo.
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