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Após trailer de 'A Pequena Sereia', profissionais debatem sobre representatividade no cinema
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Após trailer de 'A Pequena Sereia', profissionais debatem sobre representatividade no cinema

Repercussão do filme "A Pequena Sereia" promove debate sobre representatividade nas produções culturais. Em entrevista ao Vida&Arte, profissionais abordam os impactos das adaptações cinematográficas
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Adaptação foi alvo de ataques na web (Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Adaptação foi alvo de ataques na web

O primeiro trailer do live-action de "A Pequena Sereia" retrata a atriz Halle Bailey como Ariel interpretando a canção "Part Of Your World" no oceano. A atriz é a primeira protagonista negra do filme sobre a princesa do Reino de Atlântida e sensibiliza crianças que se veem refletidas na figura da cultura pop. Em vídeo compartilhado por Halle nas redes sociais, jovens aparecem em êxtase com a escolha da protagonista: "Significa o mundo para mim", diz a publicação da última segunda-feira, 12.

As reações são um contraponto aos ataques racistas que surgiram desde o lançamento do trailer, no dia 9 de setembro, durante a convenção D23, da Disney. Até o fechamento desta matéria, o trailer original na página da Disney no YouTube somava 12 milhões de visualizações, com 531 mil likes e 1,3 milhão de dislikes. As críticas de parte do público, entretanto, começaram ainda em 2019. Após o anúncio de Bailey como Ariel, internautas alegaram que esperavam uma "adaptação fiel" do desenho animado de 1989, no qual a sereia é ilustrada como uma personagem branca. "A grande rejeição se deve ao racismo já estruturado e enraizado de uma geração inteira criada sem compreender o real poder da diversidade em uma obra clássica, que hoje inspira muito mais crianças com essa escolha", explica a jornalista e pesquisadora Marcela Marvel.

A profissional aborda o mundo da fantasia e o universo dos seres místicos em perfis nas redes sociais, e explica como o autor dinarmaquês Hans Christian Andersen desenvolveu o conto "A Pequena Sereia", de 1837. "É uma bela e triste metáfora para um amor que não se concretiza entre um ser de outro mundo - mitológico - e um ser humano. O que, por si só, já pode ser identificado por qualquer sociedade e interpretado por qualquer pessoa. No ponto de vista da mitologia e de diversas culturas e folclores, esse ser místico sempre se assemelha com os padrões e aparências das localidades que o deixa vivo com sua oralidade, como a lenda de Kianda, a Sereia Angolana; ou os contos das Nyngyo, as Sereias Japonesas".

O historiador, escritor e fundador do Coletivo Escambau, Wilson Júnior, pontua que parte destes clássicos foram escritos e produzidos por pessoas brancas entre a primeira e segunda metade dos séculos XIX e XX. "Faz sentido que a maioria ou totalidade dos personagens sejam brancos, especialmente como o homem quando pensa o mundo fantástico, que seja o espelho de si mesmo. O que é estranho são pessoas carregando esses valores para o presente. Se você for fazer uma reflexão sobre a produção de fantasias, as pessoas negras são muito invisibilizadas", afirma. Por isso, ele busca atuar na perspectiva de uma "fantasia em foco decolonial", a fim de priorizar projetos de contextos culturais que não sejam dominantes. "As obras feitas no nosso tempo precisam ter diversidade como engrenagem. O mundo se percebe mais diverso e a gente não pode ser inocente para pensar que essas empresas multimilionárias estão fazendo isso só para promover igualdade, elas estão vendo uma fatia do mercado que quer se ver representado", conta.

O momento traz à tona, ainda, temas como o "whitewashing" - quando atores brancos são escalados para papéis de outras etnias -, causando o "embranquecimento" das produções culturais. "A gente tem que ver mais mudanças étnicas de personagens, mais espaços para escritores, produtores e criadores de histórias, para levarem personagens negros para estes espaços. E outras minorias também, como mulheres e pessoas LGBTQIA ", complementa. Em relação aos ataques nas redes sociais, o historiador comenta que eles podem ser mais comuns no público "geek" e cita as recentes obras do streaming "A Casa Do Dragão" e "Os Anéis do Poder" como exemplos. Ambas foram alvos de comentários racistas e machistas motivados pela escolha do elenco. "São pessoas mais aficionadas. Quando você tem esse envolvimento, você se sente dono, quando qualquer coisa da obra é modificada, mexe com esses sentimentos. O perfil é de homens entre 20 e 40 anos de idade, normalmente brancos, que sentem sua identidade sendo atacada. Se você se incomoda com a diversidade, você é racista. As pessoas querem reproduzir comportamentos e falas racistas, mas não querem o título para si", complementa.

Os impactos significativos causados pelas mudanças dentro dessas adaptações são visíveis. A jornalista Marcela Marvel pontua que a "força" que Halle trará como Pequena Sereia vai "alcançar sonhos de crianças que, antes, só se viam em personagens como 'a melhor amiga da protagonista' ou 'a integrante de uma equipe'", assegura. Para a designer Valdir Marte, as sereias sempre foram fontes de encanto e a nova versão - que será lançada em 26 de maio de 2023 - inspirou o desenho retratado nesta matéria. "Halle tem toda a natureza da Ariel que me encantou quando criança, além da voz maravilhosa. Não foi surpresa que eu precisasse desenhá-la com a caracterização do filme, que está belíssimo. Está mais do que na hora de que pessoas não-brancas se vejam nesse local de sonho e magia, e isso em todos os campos das artes. Já passou da hora da indústria cultural compreender seu papel na construção desse imaginário fantástico também para as minorias", defende.

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