Os temas em torno dos quais a vencedora do Nobel Annie Ernaux escreve estão repletos de arestas e superfícies cortantes: um aborto, uma tentativa de assassinato, a relação com os pais, um amante 30 anos mais jovem, o afastamento da família, a aldeia natal.
Históricas autobiográficas – ou autoficcionais, caso se queira –, elas não têm, contudo, qualquer traço ególatra ou marca narcisista. São uma experiência coletiva extraída a partir do mais íntimo. Uma “etnografia de si”, como ela mesma costuma se referir ao que faz, cultivando uma literatura a meio caminho de um memorialismo cuja base não é a nostalgia, mas um agudo senso político e social.
Ernaux parte sempre de uma posição multifacetada a partir da qual escrutina a própria vida e, dela, arranca o que possa haver de infamiliar.
Sua premiação é sem dúvida o reconhecimento de uma rara combinação entre domínio técnico e estético e firmeza num campo de disputa social. Uma prosa híbrida entre Bourdieu e Barthes, entre Beauvoir e Sartre. É literatura, mas também é vida e discurso.
Ernaux não se escreve para se exibir, espetacularizando o âmbito privado. Escreve porque, conforme a autora, a experiência não se completa sem esse registro.
Para tanto, serve-se de fotografias, anotações de cadernos, entradas em agendas, fragmentos de toda sorte que, mobilizados, confluem para esse painel.
Exemplo desse procedimento é “O acontecimento” (editora Fósforo), obra na qual a autora, agora laureada pela academia sueca, recupera um aborto aos 23 anos. “Sinto que o relato me arrasta e impõe, sem que eu saiba, um sentido: o da marcha inelutável da infelicidade”, conta a narradora, que se reconhece e identifica nesse “eu” projetado.
Em tempos de esvaziamento do sentido da história e de uma recusa ao passado, que se presentifica a todo instante, empacotado e imediatizado pela demanda das redes e das telas, Ernaux propõe um percurso inverso, o da exploração paciente do vivido.
É essa noção de tempo e de memória que a literatura da escritora evoca e tenta reaver, reafirmando a experiência contra o apagamento, situando-a no espaço e confrontando-a publicamente.
Essa vida a descoberto se mostra então uma permanente ação de busca de autonomia: da escritora, da mulher, da professora de literatura de origem pobre, da subalterna, da amante madura, da filha que não se reconhece mais na vida simples e algo grosseira da infância na Normandia.
Seja ao mergulhar na vertigem de uma relação amorosa ou ao retraçar a morte do pai, Ernaux empreende dois movimentos apenas em aparência contraditórios: quanto mais se aproxima de sua intimidade, mais se afasta. Despessoaliza à medida que se narra, pessoaliza quando toca nessa matéria coletiva.
Sem assombros nem torções de sintaxe, a prosa contida e direta é desde muito a sua marca. O tom enganosamente frio, contudo, se revela um convite a abismos em direção aos quais ela avança lenta mas decisivamente.
A autora francesa chega tardiamente ao Brasil. Também pela Fósforo, saíram outros três títulos além de “O acontecimento”, adaptado para o cinema e já disponível. Os mais recentes são “A vergonha” e “O lugar”. Antes deles, a editora havia publicado “Os anos”, o primeiro e mais importante de seus livros vertidos ao português.
Em novembro, Ernaux participa da Flip. Estará no Brasil depois de dois anos de pandemia e ainda na esteira de concessão da honraria literária – a glória máxima para uma escritora ou escritor.
Lá, durante a festa, apresenta “O jovem”, obra recém-lançada em que repassa a paixão vivida a fogo com um homem três décadas mais novo. É mais uma mostra de que Ernaux pretendeu sempre livrar-se das limitações que se impunham a ela.
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O Lugar
Foi com este livro que Annie Ernaux ficou conhecida, em 1983, e ganhou, no ano seguinte, o prêmio Renaudot. O Lugar pode ser considerado um precursor do próprio gênero: "auto-sócio-biografia". No livro, ela parte da morte do pai para esmiuçar relações familiares e de classe, numa mistura entre história pessoal e sociologia que décadas mais tarde serviria de inspiração declarada a autores como Édouard Louis e Didier Eribon.
Os Anos
Nesta autobiografia impessoal, Annie Ernaux lança mão de um sujeito coletivo e indeterminado, que ocupa o lugar do eu para dar luz a um novo gênero literário, no qual recordações pessoais se mesclam à grande história. Aqui, acompanhamos seis décadas de acontecimentos, entre eles a Guerra da Argélia, a revolução dos costumes, o nascimento da sociedade de consumo, as principais eleições presidenciais francesas, a virada do milênio, o 11 de Setembro e as inovações tecnológicas. De 2008, este é considerado o principal livro da autora francesa.
O Acontecimento
Livro que virou filme, premiado em 2021 no Festival de Veneza, narra a experiência vivida pela escritora em 1963 quando ela, então uma estudante de 23 anos, engravida do namorado que acabara de conhecer. Sem poder contar com o apoio dele ou da própria família numa época em que o aborto era ilegal na França, ela vive praticamente sozinha o acontecimento que explora nesta obra - escrita com base em seus diários e em sua memória. A obra foi publicada originalmente em 2000.
A Vergonha
Lançado este mês no Brasil, A Vergonha mostra, mais uma vez, uma autora buscando compreender a si e o mundo que a cerca. Aqui, ela rememora um episódio de sua infância. "Meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho, no começo da tarde", ela escreve Annie tinha 12 anos e experiência traumática resultou em um sentimento que a acompanharia para o resto da vida. No esforço de situar o incidente que encerra sua infância no contexto da história mundial, ela visita os arquivos da cidade de Rouen em busca das notícias de jornal de 1952, em uma cena que os leitores já iniciados em sua obra identificarão como embrionária de Os Anos.
O Jovem (no prelo)
Em poucas páginas, na primeira pessoa, Annie Ernaux relata uma relação vivida com um homem trinta anos mais novo que ela. Uma experiência que a fez voltar a ser, durante vários meses, a "menina escandalosa" da sua juventude. O livro, publicado em maio na França, será lançado aqui em novembro, quando a autora participa da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).
Cinco livros para conhecer a autora
O lugar
Foi com este livro que escritora francesa Annie Ernaux ficou conhecida, em 1983, e ganhou, no ano seguinte, o prêmio Renaudot. "O Lugar" pode ser considerado um precursor do próprio gênero: "auto-sócio-biografia". No livro, ela parte da morte do pai para esmiuçar relações familiares e de classe, numa mistura entre história pessoal e sociologia que décadas mais tarde serviria de inspiração declarada a autores como Édouard Louis e Didier Eribon.
Os Anos
Nesta autobiografia impessoal, Annie lança mão de um sujeito coletivo e indeterminado, que ocupa o lugar do eu para dar luz a um novo gênero literário, no qual recordações pessoais se mesclam à grande história. Aqui, acompanhamos seis décadas de fatos, entre eles a Guerra da Argélia, a revolução dos costumes, o nascimento da sociedade de consumo, as principais eleições presidenciais francesas, a virada do milênio, o 11 de Setembro e as inovações tecnológicas. De 2008, este é considerado o principal livro da autora.
O Acontecimento
Livro que virou filme, premiado em 2021 no Festival de Veneza, narra a experiência vivida pela escritora em 1963 quando ela, então uma estudante de 23 anos, engravida do namorado que acabara de conhecer. Sem poder contar com o apoio dele ou da própria família numa época em que o aborto era ilegal na França, ela vive praticamente sozinha o acontecimento que explora nesta obra - escrita com base em seus diários e em sua memória. A obra foi publicada originalmente em 2000.
A vergonha
Lançado este mês no Brasil, "A Vergonha" mostra uma autora buscando compreender a si e o mundo que a cerca. Aqui, ela rememora um episódio de sua infância. "Meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho, no começo da tarde", escreve. Annie tinha 12 anos e experiência traumática resultou em um sentimento que a acompanharia para o resto da vida. No esforço de situar o incidente no contexto da história mundial, ela visita os arquivos da cidade de Rouen em busca das notícias de jornal de 1952.
O Jovem (No prelo)
Em poucas páginas, na primeira pessoa, Annie Ernaux relata uma relação vivida com um homem trinta anos mais novo que ela. Uma experiência que a fez voltar a ser, durante vários meses, a "menina escandalosa" da sua juventude. O livro, publicado em maio na França, será lançado aqui em novembro, quando a autora participa da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).