"Eu sempre gostei de filmes mais sensoriais e poéticos. Clarice é um convite aberto para soltar a imaginação. Ela faz parte do meu imaginário desde criança. Eu sabia que dialogar com a sensibilidade me faria uma pessoa melhor". Com esses pensamentos, a diretora e roteirista Marcela Lordy se viu motivada, mas também diante de um desafio: adaptar uma obra literária de Clarice Lispector para o audiovisual.
"Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres", publicado em 1969 pela escritora, foi o livro escolhido para esse processo. Mesmo que a tarefa de adaptar uma obra "de tamanha ousadia estética" tenha provocado "certo temor" na diretora de cinema, chega com êxito no Cinema do Dragão nesta quinta-feira, 13, o filme "O Livro dos Prazeres".
O longa-metragem reflete uma co-produção entre Brasil e Argentina, tendo Josefina Trotta como co-roteirista. O filme estreou em 2020 na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, quando o evento foi realizado virtualmente, e ficou no top 3 de obras mais vistas da edição. A produção audiovisual também levou o prêmio de Melhor Atriz no 22º Buenos Aires Festival Internacional de Cinema (Bafici).
Na trama do filme de Marcela Lordy, Lóri (Simone Spoladore) é uma professora fluminense que chegou recentemente ao Rio de Janeiro e tem dificuldade em estabelecer elos afetivos profundos. Ela vive a monotonia de sua rotina de trabalho e relacionamentos rasos. Entretanto, isso começa a mudar quando conhece Ulisses (Javier Drolas), professor de filosofia argentino.
Visto como uma pessoa "provocadora", Ulisses motivará Lóri a enfrentar sua própria solidão e, com ele, a protagonista desenvolverá um relacionamento intenso, em uma jornada de investigação íntima, repleta de novas experiências e trocas. O longa aborda temas como autoconhecimento feminino.
"O conteúdo tem um eco forte com o que vivemos hoje, pois Lóri sente uma 'dor' profunda que vem da ansiedade e vontade de se identificar como mulher independente numa sociedade patriarcal. Através dela, a escritora Clarice Lispector constrói pela primeira e única vez uma mulher-protagonista que realiza seu destino obtendo a autoafirmação e a autorrealização. Algo difícil, não só na literatura da época, mas ainda nos dias de hoje, mais de 50 anos após a publicação do livro", afirma Lordy ao relacionar sua obra com a versão original de Lispector.
Assim como é apresentado no livro, o filme se debruça sobre um olhar mais intimista para a mulher, pondo-a em protagonismo - algo que Lordy avalia como uma proposta "extremamente ousada" de Clarice Lispector na época em que a obra literária foi lançada. Em sua análise, "as mulheres foram acostumadas a ler sobre o próprio corpo sob uma ótica masculina".
Apesar das semelhanças com o escrito original, o filme apresenta novas leituras. Lordy aponta a criação de "diversas cenas novas", como as do irmão Davi (Felipe Rocha), "que representam com humor e complexidade o patriarcado brasileiro". Além disso, Ulisses "é menos pedante e machista do que a versão original".
Outra coisa importante é que Lóri amadurece pelos seus próprios passos, já no livro é Ulisses quem conduz essa transformação. No filme, tanto ela quanto ele são bissexuais, o que não acontece no livro. No livro eles demoram um ano para transar pela primeira vez, e no filme eles transam na primeira vez que se conhecem. Temos mais cenas de escola no filme, a festa de formatura toma outra dimensão, com outro desfecho", revela a diretora.
Em sua análise, a Lóri do filme é "idêntica" à personagem criada por Clarice Lispector, "talvez menos submissa e mais bem resolvida". "A essência da personagem está lá, com toda a potência e brilho que o cinema permite", acrescenta. Para Marcela, "a trajetória de Lóri é a de toda mulher em busca de autonomia".
"Não só da mulher, mas de toda pessoa que tem coragem de olhar para dentro e enfrentar o que nem sabe que existe. Vivemos com Lóri o encontro com suas sombras e o mergulho profundo em sua crise existencial. Da escuta silenciosa à descoberta de sua própria voz, Lóri aprende a se colocar atravessando uma jornada de autoconhecimento que culmina na expressão do seu canto de sereia. Ao mesmo tempo selvagem e suave", define.
Após rodar por mostras e festivais, o filme estreia em Fortaleza e, "apesar do momento não ser nada favorável pós-pandemia" diante da conduta do governo federal sobre a cultura, Marcela Lordy encara com "alegria" o percurso do longa-metragem.
"O filme vem junto com a primavera e oxalá com a transformação política que precisamos para seguir fazendo o cinema brasileiro que tanto sonhamos, com a diversidade e a representatividade do tamanho de seu território. É hora de alcançar os espaços políticos para colocar a cultura dentro da nossa cesta básica.
O Livro dos Prazeres
Quando: a partir desta quinta-feira, 16, às 20h10min
Onde: Cinema do Dragão (Rua Dragão do Mar, 71 - Praia de Iracema)
Quanto: R$ 16 (inteira) e R$ 8 (meia); ingressos à venda no site Sympla e na bilheteria