O Ceará é conhecido como terra de grandes artistas das mais variadas linguagens, como música, artes visuais, literatura, teatro, dança e humor, entre outras. Entretanto, a mesma terra de um povo criativo e acolhedor também é palco de polêmicas e um cenário de desvalorização dos artistas ditos locais – que ocupam os palcos Estado afora, mas nem sempre recebem o mesmo tratamento de nomes que chegam de fora.
Nesta semana, repercutiu nas redes sociais o relato da atriz e cantora drag Mulher Barbada, que abriu o show da Pabllo Vittar no Centro de Eventos no último sábado, 15. No texto intitulado “Como é deselegante ser artista local”, ela conta ter enfrentado falta de diálogo com a produção, não ter tido camarim próprio, sequer recebido água nos bastidores. Esse e outros episódios reacendem o debate sobre dignidade profissional nas artes, em especial na música.
“Eu não tenho intenção de tietar Pabllo ou ter privilégios de uma artista nacional. Mas eu sou artista também e eu só queria descansar meus pés doloridos, respirar, tomar uma água, ser tratada com respeito e dignidade, e não ser enxotado”, desabafou Mulher Barbada. Em nota, a produtora Gandaia Produções, responsável pelo evento, atribui o ocorrido a “uma falha de comunicação” com o prestador terceirizado.
O episódio, porém, está longe de ser um caso isolado. Em agosto, os músicos Marcelo Di Holanda e Mateus Farias denunciaram que um restaurante em Fortaleza não estaria repassando totalmente o couvert artístico durante suas apresentações. O fato fez com que a dupla deixasse de se apresentar no local. A cobrança de couvert é assegurada pelo Código do Consumidor quando expressa de forma “clara e ostensiva” no estabelecimento.
Há mais de três décadas na cena de Fortaleza, a vocalista da banda Pimenta Malagueta, Verônica Sobreira, comenta que não vê um cenário muito diferente de 1991, quando iniciou, no que diz respeito à valorização de artistas da Cidade.
“A pimenta Malagueta é a primeira banda de Axé music no estado do Ceará e, ao decorrer desses 30 anos de mercado, vou infelizmente usar a expressão de que a ‘normalidade’ que muitas vezes impera é a falta de assistência com o artista, camarim, cachês, sem generalizar, pois existem eventos e produtoras que nos respeitam”, diz Verônica, que já atuou como produtora. Segundo ela, as demandas da banda giram em torno de uma estrutura básica, que nem sempre é atendida pelos contratantes.
“A gente sempre tinha o cuidado de chegar de tarde, solicitávamos que os portões dos fundos dos clubes fossem abertos, visitávamos o espaço que serviria como camarim, via a situação dos banheiros se estavam em boas condições, se não a própria produção da banda cuidava de limpar, arrumar, colocar papel higiênico. Já aconteceu da água acabar e a própria produção da Pimenta Malagueta pagar por fora, ou solicitarmos um quantitativo de água e vir bem menos do que a gente pediu”, conta a artista. Entre 2008 e 2017, a Pimenta Malagueta passou por um hiato e Verônica focou na produção executiva.
“Nesse retorno achei que o mercado tivesse evoluído, que hoje tivesse outro comportamento, outro olhar principalmente para os artistas locais. E eu vi que as coisas não mudaram muito, te digo que estacionaram e em muitos momentos regrediram”, avalia a vocalista.
Na cena do rock, as condições não são diferentes. Quando a banda Máquinas começou a ganhar espaço, o músico e produtor do Selo Mercúrio Música, Allan Dias, já pensava no valor do trabalho.
“A gente foi ganhando de maneira muito natural, bem progressiva, começamos tocando em lugares bem pequenos, nos primeiros shows a gente mal recebia cachê, mas a gente já tinha experiências de bandas tocando de graça e não era isso que queríamos fazer. A gente queria que nosso trabalho tivesse valor. É uma outra questão: você tem que dar valor ao seu trabalho, mesmo que esteja nos passos iniciais”, pontua Allan.
“Criar, se dedicar, produzir, estar disposto a fazer gera um valor muito grande que não deve ser desrespeitado”, alerta. O artista, segundo Allan Dias, realiza um trabalho minucioso para além das apresentações em si, mas também de captação do público. Hoje a arte é sua principal atividade, embora exerça outras funções por não conseguir “sustentar a vida com a música”, atuando na equipe do Sesc-CE como produtor.
Para a jornalista e produtora Renata Monte, o tratamento nunca é igualitário e artistas de maior renome, em especial os de fora do Ceará, “tendem a receber uma estrutura de produção muito maior”, seja por necessidades específicas ou por excentricidades. Para ela, o problema está quando a prioridade se dá em detrimento de atrações locais.
“Se um produtor deseja aquele ‘artista local’ em seu evento, precisa atendê-lo com o mesmo esmero, precisa entender o que é preciso fazer pra que esse artista tenha condições dignas de trabalhar”, declara a produtora. Frequentar shows, teatros e outros espaços culturais, além de acompanhar o trabalho nas plataformas digitais são caminhos possíveis apontados por ela para o público contribuir com a mudança.
“O público pode e deve ser parte dessa mudança. É sempre bom ver os ‘artistas nacionais’ por aqui, ter a oportunidade de assistir a seus shows. Mas quem tá aqui tentando fazer show todo mês, toda semana são os nossos e a grande maioria das pessoas desconhecem os artistas e trabalhos do Ceará”, encerra Renata.
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