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Identidade e cabelo: a história dos fios como forma de expressão
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Identidade e cabelo: a história dos fios como forma de expressão

Ao longo da história, os cabelos se tornaram elementos de representação dos tempos. Fios ressignificam relação com autoestima
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Larissa Eufrásio em atendimento com a trancista Isabelle Galeazzi (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Larissa Eufrásio em atendimento com a trancista Isabelle Galeazzi

As imagens de mulheres do Irã cortando o cabelo como forma de protesto viralizaram nas redes sociais durante as últimas semanas. O movimento foi reconhecido como uma "revolução feminina" despertada pela morte de Mahsa Amini, jovem curda que entrou em coma após ser detida por ter, supostamente, violado a lei que exige que as mulheres cubram os cabelos com um véu. Já no Brasil, parte do elenco da novela "Órfãos da Terra" (2019) publicou vídeos reproduzindo o ato. De acordo com declarações de ativistas iranianas, cortar os fios é uma antiga tradição persa de tristeza.

Os acontecimentos reverberam que, debaixo dos cabelos, há uma longa relação entre poder e identidade. Muito além da estética, os fios são representações constantes das culturas de cada tempo. As ligações surgem ainda na mitologia, a exemplo de Medusa, figura que petrifica indivíduos com cobras situadas nas madeixas. A Bíblia traz a narrativa de Sansão, homem cuja força está depositada nos longos cabelos - tidos como sinais de virilidade e força divina -. Para Rapunzel, personagem do conto de Grimm, a cabeleira simboliza a própria trajetória.

A retrospectiva da história da civilização mostra que este elemento físico já chegou, inclusive, a refletir sobre a vida e a morte, além da realidade e da fé. Povos como os incas tinham o primeiro corte de cabelo como uma ocasião de cerimônia, para proteger contra os maus espíritos. Em contrapartida, a entrada para grande número de mosteiros implica a eliminação dos fios, uma simbologia de renúncia e sacrifício. Na Europa Medieval, a coloração ruiva se tornou uma das representações das bruxas, mulheres que foram queimadas. Durante a Idade Média, os fios soltos diferenciavam as solteiras das casadas, transformando em uma marca para distinguir pecadoras e adúlteras.

Cada mecha pode guardar recortes religiosos, políticos e sociais. Em algumas localidades do Oriente Médio, um percentual das mulheres cobre a cabeça com o hijab - lenço utilizado por volta da cabeça, orelhas e pescoço -. Movimentos culturais, como o "Black Is Beautiful", buscam o empoderamento estético fora dos estereótipos formados nos processos colonizatórios. Criada em 1960 nos Estados Unidos, a ação se tornou símbolo na luta antirracista.

Fato é que o assunto é tão relevante que inspira estudos, livros, filmes, canções e poesias, como a cantora Gal Costa entoa em um dos seus grandes sucessos: "Cabelo quando cresce é tempo/Cabelo embaraçado é vento/Cabelo vem lá de dentro/Cabelo é como pensamento". Os avanços conquistados com o passar dos anos são visíveis, mas ainda há resquícios de padrões estéticos - que podem ser corroborados neste universo de celebridades e redes sociais - que insistem em condicionar o formato, o tamanho e a cor dos fios.

Porém, como bell hooks menciona no artigo "Alisando Nosso Cabelo", publicado em 2015, "em uma cultura de dominação e antiintimidade, devemos lutar diariamente por permanecer em contato com nós mesmos e com os nossos corpos". Mulheres, então, encontram meios para se apropriar dos fios além da beleza, como uma importante ferramenta de autoestima e conexão.

Fortaleza, Ce, BR 18.10.22 -  Como o cabelo pode ser um meio de expressão e posicionamento. Na foto: Isabelle Galeazzi, do Estúdio Nzinga Trancismo. (Fco Fontenele/OPOVO)
Fortaleza, Ce, BR 18.10.22 - Como o cabelo pode ser um meio de expressão e posicionamento. Na foto: Isabelle Galeazzi, do Estúdio Nzinga Trancismo. (Fco Fontenele/OPOVO)

Isabelle Galeazzi

O início da vida adulta da trancista e hairstylist Isabelle Galeazzi, de 24 anos, também foi um novo começo para a sua relação com a imagem. "Resolvo dar início à transição capilar, quando começo a me cercar de narrativas que buscam ressignificar o cabelo cacheado e crespo como um cabelo que pode, sim, ser desejado por nós mesmas", conta. A partir deste momento, ela relata que o cabelo deixa de ser algo que "aprisiona" para se tornar um elemento de liberdade.

O processo aconteceu depois de anos alisando os fios, um procedimento considerado "doloroso" e limitante. "Minha relação com o cabelo não era muito amigável. Na verdade, eu o odiava", relembra. Ao passo em que foi redescobrindo as próprias texturas e formas, Isabelle se deparou com as tranças afros. "Começo a experimentar diversos modelos em mim mesma, resgato o gosto pelo meu próprio cabelo e isso desperta o interesse nas pessoas ao meu redor, que passam a pedir para que eu faça nelas também", narra.

Desde então, mais precisamente do ano de 2018, ela é uma das pessoas por trás do estúdio Nzinga Trancismo. Com nome em referência à heroína nacional de Angola, Nzinga Mbandi Ngonal, o estabelecimento trabalha com todos os tipos de tranças. "Com adição de extensão de cabelo ou sem, dreads removíveis, tratamentos e consultorias de estilo com trancismo", lista Isabelle.

O principal perfil de cliente da hairstylist são pessoas que buscam mais proximidade e conforto com a própria imagem, além da praticidade no cotidiano. "É costume os clientes relatarem o quanto a experiência foi benéfica para a autoestima deles e como economizaram mais tempo na hora de se arrumar". Ela se alegra de oferecer uma "vivência agradável", em contrapartida à relação agressiva que manteve com o cabelo durante a adolescência. Para Isabelle, o cabelo é uma forma de tecer as experiências "para além dessa dinâmica colonial que nos é imposta". Ela pontua que a criatividade é uma das principais ferramentas quando se considera uma agenda política antiracista.

"Com o trancismo conseguimos reafirmar a história dos nossos ancestrais e ainda criar novas narrativas que se opõem àquela que nos inferioriza e tenta nos inviabilizar. Acredito que as tranças trazem o poder para as nossas mãos e representam um pedacinho das múltiplas faces da nossa estética enquanto resistência".

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FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 18-10-2022: Carlise de Almeida usa suas redes sociais para falar sobre sua relação com cabelo grisalho. (Foto: Fernanda Barros/ O Povo)
FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 18-10-2022: Carlise de Almeida usa suas redes sociais para falar sobre sua relação com cabelo grisalho. (Foto: Fernanda Barros/ O Povo)

Carlise Almeida

A estilista Carolina Herrera disse que "apenas mulheres sem classe mantêm cabelos longos após os 40" em entrevista ao portal britânico Daily Mail no ano de 2022. A fala viralizou novamente a partir da resposta da apresentadora Eliana, de 48 anos, em junho de 2022. "É decepcionante saber que muitas pessoas ainda pensam dessa forma", declarou. O episódio foi citado por Carlise Almeida, de 58 anos, ao mencionar o etarismo - termo utilizado em referência à discriminação etária - dentro do mundo da beleza. "Uma grande bobagem", define.

Carlise assumiu totalmente os cabelos brancos durante o primeiro ano da pandemia e segue em processo de transição para os fios grisalhos. Ela compartilha reflexões sobre o processo nas redes sociais, espaço digital onde acumula mais de 29 mil seguidores. "Acho que o cabelo tem um papel muito importante na nossa identidade, estilo e autoestima. É a moldura do rosto, como um quadro", cita. Ela destaca que as madeixas acompanham as transições de todos os momentos da vida. "Nunca deixei ele em paz", brinca.

No final do ano de 1970, Carlise fez a primeira permanente - técnica que cacheia os fios com química. A próxima fase, então, foram as luzes. Na época, elas eram feitas com touca de borracha e agulha de crochê. "Durou até a gravidez da minha primeira filha, porque prejudicaria a gestação", rememora.

Logo em seguida, ela testou deixar as madeixas mais "compridas e naturais", com apenas duas mechas descoloridas frontais. "Em 1999 radicalizei mesmo, cortei meu cabelo igual o da Xuxa, todo mês eu ia no salão para cortar. Foi uma fase que lembro com carinho, mas até hoje acho que ninguém curtia, só eu. Mas era isso que me importava, o cabelo me fazia feliz".

À medida em que o tempo foi passando, Carlise disfarçava os brancos com luzes. "Esse processo de aceitação durou quase dez anos. Não existe regra nenhuma. Usa-se a cor, o corte, o comprimento que faz com que a gente se sinta bem", defende. Com alcance significativo nas redes sociais, Carlise afirma que tem um público receptivo. "Em nenhum momento fui criticada por assumir o cabelo branco", afirma. Em relação à sua influência dentro do meio digital, principalmente no que tange às temáticas de beleza e estética, ela reforça que deseja interferir de maneira positiva. "Gostaria de influenciar quem me acompanha pelo equilíbrio".

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Livro
Livro "Amoras", de Emicida, aborda a representatividade

Na mídia

O tema também aparece na mídia em distintas formas. Com o crescimento dos influenciadores digitais, as mulheres têm mais referências quando o assunto é cabelo. Nomes da mídia como Maísa e Ludmilla compartilharam sua trajetória com o processo de transição capilar, indo da progressiva até o reconhecimento dos cachos.

Algumas postagens das famosas contêm dicas de produtos e finalização, por exemplo. Já outras personalidades da internet dividem inspirações de cuidados e penteados com cabelos brancos. A influenciadora Grece Ghanem, de 55 anos, assume os grisalhos e posa com looks estilosos.

Para que os adeptos dos cabelos coloridos não fiquem de fora, pessoas como Maíra Medeiros repassam suas técnicas para deixar os fios mais vibrantes e, claro, com bastante personalidade. Em Fortaleza, o Salão Experimental é reconhecido por modelos com muito estilo.

Produções culturais trabalham a relação entre cabelo e representatividade em obras como "Amor de Cabelo" (2020). A animação está disponível no Youtube e venceu o Oscar 2020 na categoria Melhor Curta-Metragem de Animação. O curta é protagonizado por uma família negra e mostra um pai que aprende novas formas de pentear a filha.

A trama envolve assuntos como aceitação e auto estima. Já o livro "Amoras", escrito pelo cantor Emicida, mostra uma garota negra que reconhece sua identidade a partir de uma conversa com o pai. O texto foi inspirado na própria filha do rapper, a pequena Tereza, de quatro anos.

 

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