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Autor questiona padrão heteronormativo no livro "Flor do aguapé - contos bixa"
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Autor questiona padrão heteronormativo no livro "Flor do aguapé - contos bixa"

Professor e artista Lúcio Flávio Gondim entrevista Cláudio Rodrigues, autor do livro "Flor do aguapé - contos bixa"
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Cláudio Rodrigues também é coordenador 
do Grupo de Estudo da Língua de Eros (GELE) (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Cláudio Rodrigues também é coordenador do Grupo de Estudo da Língua de Eros (GELE)

"A dicionária diz que Bicha é um substantivo feminino que significa homossexual masculino, gay, viado. Homem efeminado. De modo familiar, há a BIBA, que, quando é muito biba, a gente chama de BIBÍSSIMA, ou, 'relativo a uma bicha extremamente bicha'", fala o narrador de "Flor do aguapé - contos bixa". Conversamos com seu autor, o maranhense radicado em Fortaleza, Cláudio Rodrigues, que reflete conosco sobre sua atuação como professor na Universidade Federal do Ceará, a coordenação do provocador Grupo de Estudo da Língua de Eros (GELE), seu pós-doutorado sobre produções literárias com temática de sexualidade desviante e sua recente obra literária.

O POVO: Pode falar um pouco sobre sua recente pesquisa a respeito de escritas e poéticas fora do padrão heteronormativo?

Cláudio Rodrigues: Essa pesquisa, realizada, no Programa de Ciência da Literatura da UFRJ, tinha por objetivo fazer um mapeamento de antologias que falassem sobre os desejos, erotismos e sexualidades de sujeitos, discursos e comportamentos dissidentes. Entendo que as antologias são marcas políticas de uma determinada época, de um determinado discurso do sistema literário. Por fim, eu reuni, como corpo de pesquisa, doze antologias. Boa parte delas, antologias sobre homoerotismo e, em outra parte, mulheres falam do Erotismo em contos e em Poesia. Como resultado dessa pesquisa, tenho prontos dois textos que provavelmente virarão livros ou artigos. O primeiro chama "Erotismo segundo as mulheres" e vai desde a década de 80 até a antologia de poetas cearenses ou aqui radicadas, "O olho de Lilith". O segundo texto, mais difícil de ser feito, chama-se "A literatura fora do armário". Nele, conto a história das antologias com a temática homoerótica desde a década de 60, no período ditatorial e termino com "Poesia Gay Brasileira" publicada recentemente, em 2017.

OP: Sobre as coletâneas, imagino que a questão temática não garante por si só uma qualidade estética. Como essas duas instâncias aparecem na sua pesquisa?

Cláudio: Esse é um assunto delicado, sobretudo, quando estudamos literaturas escritas por autores dissidentes. Algumas das antologias que eu estudei foram resultado de concursos literários abertos nacionalmente e o maior problema de textos ruins e de textos bons, do ponto de vista da crítica literária, nem está com os autores, mas em quem organiza esses concursos e faz a seleção desse material. Encontrei muitos contos discrepantes, em tamanho e qualidade da narratividade e isso é um problema muito sério desses materiais porque eles ficam na história. Agora, é preciso ter cuidado com essa "qualidade literária" porque muitas vezes querem que a gente diga que um texto engajado social é um texto menor e não é. O século XXI é o século das minorias. Elas precisam ser ouvidas. É importante ler todo esse material. As sexualidades desviantes, o erotismo, o obsceno são posturas políticas.

OP: O que justificaria para você uma distância entre a comunidade LGBTQIA e a literatura?Por que não conhecemos mais profundamente ícones literários da comunidade como Caio Fernando Abreu (que você traz na epígrafe do seu livro), João Silvério Trevisan, dentre outros?

Cláudio: Essa questão, importantíssima a esse momento, leva-me ao projeto do pós-doc. Eu queria de fato reconquistar uma história, buscar os cacos da presença desses sujeitos na literatura brasileira porque eu tinha dificuldade de reconhecê-los. Esse não é um tema de sala de aula. Os currículos da literatura ainda são muito brancos, cis, muito normativos. O lugar do gay precisa ser garimpado com muito cuidado e foi isso que tentamos fazer. Embora haja autores héteros e até homofóbicos nessas coletâneas, há autores dissidentes. Eu não queria ficar apenas com um Adolfo Caminha no século XIX, com um "Bom Crioulo", com "O homem gasto" do Ferreira Leal, com Aluízio Azevedo. Veja: só agora Mário de Andrade saiu do armário! Ele tem uma obra vasta, de uma poética repleta de perspectivas homoeróticas e que sempre foram silenciadas. A sexualidade não faz parte das categorias de análise como classe social, gênero e outros temas possíveis. Ela foi ignorada nos estudos literários, então é preciso conhecer Lúcio Cardoso, Gasparino da Mata, Valmir da Mata e tantos autores que escrevem muito bem. Uma Cassandra Rios! É preciso que a gente conheça quem veio antes...

OP: No meio das trevas conservadoras, qual a relevância de, em seu novo livro, dar voz a crianças viadas, tema proibido à causa de uma falaciosa sexualização de menores pela Arte e pela Educação? E de fazer falar "Ada", o macunaímico primeiro homem de Adão? O caminho para resistir é confrontar?

Cláudio: Esse livro é resultado do que eu sou como um sujeito dissidente e como pesquisador. Ele é um palimpsesto. Pode ser lido até como um ensaio teórico e crítica do ser bicha, da existência viada. [...] Quem foi uma criança viada sabe como é difícil em uma sociedade que castra comportamentos e isso acontece dentro da própria família para que menino e menina pareçam com modelos naquilo que Judith Butler chamou de "atos performativos". Uma criança viada é desviante e subversiva. No livro, elas são caladas, reprimidas. A literatura denuncia isso e mostra como falaciosa essa "sexualização" que a arte ou a estética tentaria promover, o famoso kit gay ou a mamadeira de piroca. Todos esses são elementos de uma sociedade conservadora para impor comportamentos de macheza ou feminilidade. Os sujeitos dissidentes sexuais mandam isso para o lixo, já a partir da infância. [...] O conto que dá título ao livro, "Flor do Aguapé", é uma recontação do primeiro capítulo do Gênesis, é uma paródia. Por isso, quis criar a personagem "Ada", que nasce antes da Eva, depois que Lilith foge do paraíso como uma forma de contrapor os discursos provavelmente escritos por homens, para que a gente tenha pela perspectiva do humor uma proposta outra de análise desses discursos míticos. É chamar o leitor para discutir: e se houvesse uma bicha originária narrada nos livros sagrados? Existem várias formas de resistir em tempos como o nosso: na política, como artivistas e, no meu caso, quero ser lido como uma potência política.

 

"Flor do aguapé - contos bixa"

Onde: disponível para venda pelo site "O Sexo da Palavra" (www.osexodapalavra.com.br)

Quanto: R$ 36, além da taxa adicional do frete e do pagamento pelo Paypal

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