Quando o poeta amazonense Thiago de Mello (1926 - 2022) foi preso pela ditadura militar, talvez não tivesse imaginado que encontraria, na cela de seu encarceramento, versos de um deus poemas. O enunciado “Faz escuro mas eu canto, porque a manhã vai chegar” acabou servindo para lembrá-lo da necessidade de continuar lutando pelo respeito à vida humana e a ter esperanças de dias melhores.
A construção emblemática também inspirou o título da exposição da 34ª Bienal de Arte de São Paulo, traduzindo “uma atitude de inconformismo perante as questões que desafiam o mundo contemporâneo, mas também de superação, esperança e leveza”, nas palavras de Lenise Queiroz Rocha, presidente da Fundação Edson Queiroz.
Mantenedora da Universidade de Fortaleza (Unifor), a instituição firmou parceria com a Fundação Bienal de São Paulo para abrigar o programa de mostras itinerantes da atual edição da Bienal. Nessa iniciativa, partes da exposição vista em São Paulo são “transportadas” para outras cidades brasileiras, incluindo Fortaleza. Até 4 de dezembro, é possível conferir gratuitamente no Espaço Cultural Unifor um recorte de 73 obras da mostra “original”.
A exposição em Fortaleza é organizada a partir de três “enunciados” - neste caso, recebem esse nome pelo objetivo de não serem delimitadas abordagens únicas, expandindo os sentidos e provocando reflexões nos visitantes a partir de conexões entre os trabalhos expostos. São eles “Cantos Tikm’n”, “A imagem gravada de Coatlicue” e “Hiroshima mon amour”, de Alain Resnais.
Os enunciados representam “objetos ou elementos imateriais com histórias marcantes ao redor dos quais obras e artistas são reunidos”. Fazem parte da exposição trabalhos de Alice Shintani, Daiara Tukano, E.B. Itso, Frida Orupabo, Gala Porras-Kim, Gustavo Caboco, Jaider Esbell, Jungjin Lee, Melvin Moti, Seba Calfuqueo e Victor Anicet.
A mostra é atravessada pela heterogeneidade de origens, lugares e histórias - com forte presença de artistas indígenas. Guiado pela professora e gestora do Espaço Cultural Unifor, Adriana Helena, e pelo mediador e estudante de Cinema e Audiovisual, Lucas Ranyere, este repórter visitou o acervo e observou a diversidade das obras presentes.
Entre pinturas, fotografias, videoperformance, instalações e colagens, os enunciados de “Faz escuro mas eu canto” de fato permitem múltiplas interpretações de seus apreciadores, mas uma mensagem parece guiar suas construções: o resgate às ancestralidades. Logo ao entrar no ambiente da mostra no Espaço Cultural, o visitante se depara com a série “A Guerra dos Kanaimés”, do pintor indígena Jaider Esbell (1979 - 2021).
Produzidas entre 2019 e 2020, as 11 telas com pinturas acrílicas são dispostas em uma sucessão de cenas alegóricas. O autor buscou abordar a construção de kanaimés (comumente vistos como espíritos que causam a morte de quem os encontra) a partir de conflitos enfrentados pelo povo Macuxi atualmente. O artista evoca a ancestralidade da floresta.
“São obras que trabalham o que é uma entidade da floresta a depender de quem está dentro e de quem está fora dela. Para os povos indígenas, os kanaimés são figuras que protegem da ação exterior, mas para quem vem de fora e tenta essa invasão são figuras perigosas e amedrontadoras. O Jaider Esbell faz esse jogo de símbolos da história indígena”, compartilha o mediador Lucas Ranyere.
O trabalho de Daiara Tukano também se destaca na mostra, A artista, professora e ativista indígena do povo Tukano pesquisa sobre as tradições e a espiritualidade de seu povo. Ela se recusa a “fácil catalogação do que produz como arte” no sentido atribuído ao termo por culturas ocidentais e considera suas obras com valores que “transcendem” a fruição estética.
A partir da videoperformance Alka Domo, o artista chileno de origem Mapuche, Seba Calfuqueo, busca instigar reflexões sobre o status social, cultural e político do povo e da cultura Mapuche na sociedade chilena contemporânea. Na maior parte do vídeo, veste calça e camisa preta, sempre com um sapato de salto alto. Em diferentes locais, ele recolhe do chão um tronco de Coihue, madeira ancestral do sul do Chile, e o coloca no ombro, suportando seu peso com esforço.
O artista carrega um tronco oco de quase dois metros de comprimento - no Chile, “oco” também designa, de forma pejorativa, identidades que escapam à heterossexualidade. Os lugares que escolheu para sua performance simbolizam a história dos Mapuche no CHile. Calfuqueo buscou problematizar a complexa interação entre a população indígena e chilena.
“A gente vê como em vários locais, alguns até muito movimentados, as pessoas passam e é como se ele não estivesse ali. Ele fica um tempo carregando esse tronco, tentando se equilibrar com o salto, algo que não é fácil. É como se ele fosse invisível naquele ambiente”, pondera a professora Adriana Helena.
“Faz escuro mas eu canto” ainda reúne obras que refletem sobre a necessidade de preservação do meio ambiente e de salvaguarda de culturas e conhecimentos - como as observadas no enunciado “Cantos Tikm’n”. Além disso, questiona o papel de museus que exibem peças artísticas a partir de acervo adquirido em lugares vítimas de exploração e “saqueamento”.
Os diálogos não se esgotam ao fim da exposição. Realizar conexões entre os trabalhos a partir de suas propostas permite a continuidade das reflexões sobre a necessidade de preservação da ancestralidade - e de quais horizontes se expandem a partir disso. Um convite, então, a múltiplos caminhos.
Faz escuro, mas eu canto
Quando: terça a sexta-feira, das 9 às 19 horas; visitas até
4 de dezembro
Onde: Espaço Cultural Unifor (Av. Washington Soares, 1321 - Edson Queiroz)
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