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Centenário de Aldemir Martins: o referencial de Brasil a partir do Nordeste
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Centenário de Aldemir Martins: o referencial de Brasil a partir do Nordeste

Com influências de um Nordeste múltiplo, o artista visual Aldemir Martins potencializou a criação do referencial de brasilidade a partir da popularização de suas obras
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Aldemir Martins (1922 - 2006) ao lado de uma de suas obras (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Aldemir Martins (1922 - 2006) ao lado de uma de suas obras

Com raízes fincadas no distrito de Ingazeiras, a cerca de 467 quilômetros de Fortaleza, Aldemir Martins (1922 - 2006) desenhou o Nordeste para além das fronteiras nacionais. Inspirado pelas primeiras vivências em um Cariri rico de cultura, o artista visual firmou obras em constante diálogo com a natureza, a literatura, o futebol, a população brasileira. Neste 8 de novembro é celebrado o centenário do ilustrador, pintor e escultor, que transformou tudo que tocava - entre nanquim, tecido, aquarela e acrílica - em arte.

"Creio que a obra de Aldemir Martins caracteriza-se como uma contribuição ímpar ao universo das formas figurativas, mas também representa a disposição do artista para viver uma pluralidade de experiências estéticas, a partir de um substrato temático muito bem definido: o Nordeste", aponta a doutora em Sociologia Kadma Marques. Autodidata, Aldemir transformou os quereres artísticos de menino em mais de sete mil criações produzidas ao longo de sete décadas de carreira. Dos lápis de cor da infância saíram delineamentos de gatos, pássaros e galos; retirantes e rendeiras; peixes e jangadas; frutas e flores. "Uma forte coerência formal que possibilitou tratar do universal a partir de um modo de ver nordestino", complementa a socióloga.

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Enquanto enveredava pelos próprios interesses nos caminhos culturais, o cearense integrou o Exército Brasileiro entre 1941 e 1945. Logo após a saída das Forças Armadas, se une a contemporâneos das artes visuais, como Antonio Bandeira (1922 - 1967) e Mário Baratta (1915 - 1983), para a criação da Sociedade Cearense de Artes Plásticas (Scap). Em seguida, se muda para o Rio de Janeiro a fim de alcançar novos territórios até chegar, também, em São Paulo.

Kadma destaca que esta movimentação na década de 1940 faz parte de um "esforço incansável de difusão de trabalho", possibilitando que o desenhista passasse a ocupar um "lugar diferenciado" junto à crítica e ao mercado da arte sulista. "Assim, participou ativamente de circuitos de intelectuais e políticos, viajando regularmente pelo Brasil para realizar exposições e participar de salões, além de angariar premiações e reconhecimento internacional".

As distintas atuações tornaram Aldemir um artista verdadeiramente popular. Ele contribuiu com ilustrações em periódicos como "Correio Paulistano" e "O Jornal de São Paulo". Suas obras, inclusive, ultrapassaram as telas e foram estampadas em novelas como "Gabriela" (1975) e "Terras do Sem-Fim" (1981). Também estiveram presentes em pratos, roupas, capas e miolos de livros, a exemplo de "Tereza Batista Cansada de Guerra" (1972). A potência de sua produção, sinaliza Kadma, está na "capacidade de abrigar infinitas possibilidades interpretativas" que percorrem desde a esfera popular até a massiva.

Para a historiadora Eliene Magalhães, as imagens desenvolvidas pelo escultor auxiliaram na construção de uma ideia de nacionalidade. "Ele de certa forma nos ajuda a construir esse imaginário porque ele partilha dessas ideias, essa percepção do que significa ser brasileiro, ser cearense, vai se transformando", especifica. Ela reforça que Aldemir produz "um modernismo meio tardio", com aspirações para projetar um novo momento artístico no Ceará. O Estado, vale pontuar, não deixa de ser o estudo principal.

"Ele era muito disciplinado, tem um processo experimental, mesmo. Em todos, permanecem as referências de elementos que caracterizam a região Nordeste e que são identificados como representativos de uma cultura brasileira. Mesmo produzindo de uma joia a um copo de requeijão, esses temas permanecem", ressalta a historiadora. Em um contexto político-social de exclusão histórica dos artistas nordestinos, Aldemir favoreceu a propagação de uma cultura regional a partir de figuras coloridas que traduzem o vibrante do local. Como caracteriza Kadma, é uma visão "generosa e profunda" da região. Reverberar a obra de Aldemir é reconhecer a importância dos seus ofícios, mas também compreender o "compromisso amoroso que ele assumiu de representar a cultura", arremata a socióloga.

 

Capa do Anuário do Ceará 2022 - 2023
Capa do Anuário do Ceará 2022 - 2023

Capítulo especial

A trajetória do artista é descrita no capítulo especial sobre Aldemir Martins no Anuário do Ceará 2022 - 2023, publicação realizada pela Fundação Demócrito Rocha (FDR). O material é escrito pela jornalista Bruna Forte.

Edição digital disponível
gratuitamente em: www.anuariodoceara.com.br

Acervo

Parte do acervo do cearense pode ser visto pelo público na Coleção Aldemir Martins, disponível no Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (MAUC/UFC). A exposição é uma retrospectiva da trajetória do artista.

Onde: av. da Universidade, 2854 - Benfica

Quando: segunda a sexta-feira, das 8 às 12 horas e das 13 às 17 horas

Gratuito

Entrevista

Veja na íntegra a entrevista com a doutora em Sociologia Kadma Marques, com pesquisa em economia criativa, sociologia da arte e da cultura. Ao Vida&Arte, a profissional liga a trajetória de Aldemir com a criação de novos ideais para o Nordeste. Confira:

O POVO: Em sete décadas, com mais de sete mil obras, Aldemir Martins foi um artista múltiplo. Como você caracteriza a obra dele?

Kadma Marques: Creio que a obra de Aldemir Martins caracteriza-se como uma contribuição ímpar ao universo das formas figurativas, mas também representa a disposição do artista para viver uma pluralidade de experiências estéticas a partir de um substrato temático muito bem definido: o Nordeste. Subjaz à multiplicidade de meios e técnicas por ele mobilizados – Aldemir foi não só pintor e desenhista, mas também gravurista, ceramista e escultor – uma forte coerência formal que possibilitou tratar do universal a partir de um modo de ver nordestino. Seu estilo particular fez-se presente na altivez de inúmeros cangaceiros e rendeiras; na beleza de peixes, galos, aves, cavalos, gatos, frutas e flores. Impregnados de uma regionalidade indelével, essas figuras saltaram do acervo imaginário do artista para a realidade de telas, páginas da literatura, vinhetas de telenovelas, criações na cenografia, na joalheria, na tapeçaria, na pintura em objetos de decoração, além de estamparias destinadas ao universo da moda. Percebe-se assim que a obra de Aldemir Martins realiza, ao mesmo tempo, um movimento aberto, múltiplo, infinito de exploração de materiais e técnicas, e a afirmação da permanência criativa de um modo específico de traçar figuras que estabilizam sua identidade formal no encontro com cada apreciador.

OP: Quando falamos de Aldemir, nós também falamos de um Nordeste amplamente representado. De que maneira ele traduz o Nordeste nas obras?

Kadma: Segundo a pesquisadora Ana Mae Barbosa (1997), a situação de exclusão histórica dos artistas do Nordeste, como objeto da crítica e do mercado, favoreceu o desenvolvimento de uma cultura visual própria na região, capaz de filtrar correntes internacionais com maior autonomia. Ela compreende assim a constituição de uma diversidade visual de qualidade rara e insubmissa, cujo espírito pós-colonialista acha-se mais definido do que em outras regiões do país. Talvez por isso, no Nordeste, o figurativo como representação diferencie-se tanto de artista para artista. Para tanto, basta aproximar a produção plástica de Raimundo Cela e de Aldemir Martins. Ambas são emblemáticas da criação de imagens associadas à região. Porém, as figuras de rendeiras, jangadeiros e cangaceiros de Aldemir distanciam-se não da temática, mas do realismo perceptual acadêmico de Cela. No caso de Aldemir Martins, trata-se de um figurativismo que se revela como real plástico, à semelhança do efeito provocado pelo abstracionismo. Suas figuras, muitas vezes inseridas em paisagens desenhadas e pintadas, unem-se a um sol que nasce farpado. Seus cangaceiros, rendeiras, retirantes e jangadeiros são tão altivos quanto seus gatos e galos, como se sua existência em condições climáticas adversas tivessem provocado o despertar de uma riqueza demasiadamente humana. Do mesmo modo, a delicadeza da renda espraia-se em detalhes que atravessam e estruturam mesmo seus desenhos. Sem falar no colorido do artista que evoca uma região particularmente bela e vívida. É uma visão generosa e profunda do Nordeste que faz com que a vivência do local tangencie o sentimento de universalidade.

OP: Aldemir também foi um artista popular da sua geração, ganhando espaço em novelas da Globo, por exemplo, além de conversar com diferentes públicos. Quais fatores podem ter influenciado essa popularização?

Kadma: Aldemir Martins conformou uma obra cuja potência reside justamente em sua capacidade de abrigar infinitas possibilidades interpretativas, da esfera popular à massiva. A concepção de nacional mescla-se às paixões que a caracterizam no Brasil. A figuração imediatamente regionalista do artista não cessa de se re-apresentar ao público sob as mais variadas formas, temas, técnicas e suportes postos a serviço de um desejo de expressão que deliberadamente enfraquece os limites entre local e universal, entre regional e nacional. Ademais, dentre os artistas do Nordeste, o lugar diferenciado que ele ocupou junto à crítica e ao mercado de arte sulista constituiu-se graças a um incansável esforço de difusão de seu trabalho, iniciado a partir da década de 1940 quando se mudou para o Rio de Janeiro e, em seguida, para São Paulo. Assim, participou ativamente de circuitos de intelectuais e políticos, viajando regularmente pelo Brasil para realizar exposições e participar de salões, além de angariar premiações e reconhecimento internacional. Todas estas experiências acumuladas até o ano de 2006, momento de seu falecimento em São Paulo, permitiram ao artista ampliar seu olhar e diversificar os meios criativos que lhe valeram acesso a uma diversidade de públicos. A popularização de seu estilo plástico aponta que o reconhecimento da qualidade de sua obra refere-se, mas não se restringe, a um enraizamento no seu território de origem, encontrando acolhida nacional e internacional.

OP: Gostaria que você falasse um pouco da importância de continuar reverberando a obra dele neste centenário. Como as produções de Aldemir continuam sendo influentes atualmente?

Kadma: Creio que o centenário de todo artista representa um momento muito especial de reafirmação do valor da obra e da trajetória de alguém que se constituiu socialmente em referência ética e estética. O compromisso firmado por Aldemir Martins com suas origens, a coerência na condução da produção plástica que o levou a vincular de forma muito estreita o regional e o nacional, como mostra Eliene Santos (2015) em sua dissertação de Mestrado, apontam que sua obra ainda precisa ser fortalecida na condição de patrimônio nacional. As publicações sobre sua produção se resumem, sobretudo, a catálogos e artigos. É preciso lembrar que Aldemir é um artista que expressa o que é ser brasileiro a partir do Nordeste, justamente em um momento de tensão político-identitária no qual a imagem que se tem do Nordeste e dos nordestinos é atingida. Reverberar a obra de Aldemir Martins é especialmente oportuno, pelo reconhecimento da qualidade plástica de sua poética, da contribuição original que ele propiciou ao domínio figurativo das artes, mas também pelo compromisso amoroso que ele assumiu de representar a cultura na qual se conformou sua sensibilidade artística.

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