"Usar somente vestidos azuis. Calçar somente sandálias de couro marrom. Não cortar o cabelo, manter o cabelo preso. É proibido ouvir música, assistir televisão e filmes e frequentar a escola", são algumas das dezenas de regras seguidas por Amanda, uma garota de doze anos e protagonista do livro "Corpo Desfeito".
Jarid Arraes, escritora caririense, parte do olhar de uma adolescente, que apesar de enfrentar a rigidez e de um ambiente familiar conturbado, mantém uma imensa curiosidade de conhecer a vida.
Consenso na ciência e no conhecimento popular, os primeiros anos de vida são cruciais na formação humana. Violência, grosserias e injustiça são vilãs do desenvolvimento pleno, fatores que compõem a criação da menina.
Amanda vive com a mãe e com os avós em uma cidade no interior do Ceará, na região do Cariri. Desde pequena vivencia a fome, as ausências e uma série de abusos, engolida por um ciclo de violência que mantém raízes profundas e parece não ter fim. Violência que começa com o avô, Jorge, entregue ao alcoolismo, e com a avó, que de tanto sofrer, desconta na menina a infelicidade do matrimônio.
Dois episódios, entre eles uma tragédia, reduzem a família a Amanda e a avó. Fiel à realidade e sem espetacularizar fins trágicos, Jarid consegue abordar a dualidade da morte, ora como fatalidade, ora como alívio. Nisso, a construção de personagens que despertam no leitor raiva e pena, sem lhes conceder perdão, é um dos trunfos do texto. Afinal, quem disse que quando se morre vira santo?
Outro ganho é a ambientação interiorana, incrementada pelo imaginário religioso, capaz de aproximar qualquer um que tenha, por menor que seja, vínculos longe das grandes cidades. O próprio Padre Cícero, símbolo religioso do Cariri, aparece no texto como motivo de devoção da avó. A mesma matriarca que quando se vê tomada pelo luto recorre ao fanatismo religioso, o que lhe faz abandonar os santos católicos e cultuar a finada filha.
Apesar dos encantos da literatura bucólica, Jarid tem um texto duro que mostra que nem sempre "poetizar" é sinônimo de romantizar. Narra, com riqueza de detalhes, episódios abusivos. Pela temática "familiar" e por seu estilo cru, pode causar agonias ao leitor à medida que o conecta com a garota, com a avó e com o contexto. Sensação esta que é possível encontrar em outros expoentes da literatura brasileira contemporânea, como as obras "Torto Arado" de Itamar Vieira Júnior, e "Pequena Coreografia do Adeus", de Aline Bei.
As reflexões da personagem-narradora dão a sensação de ler um diário ou estar em uma confidência íntima de melhores amigos. Para construir a densidade psicológica de Amanda, a escritora reflete sobre temas existenciais como a culpa, o amor e a esperança.
"Essa é a dança da culpa. É assim que o corpo passa mensagens contraditórias. Uma delas diz que você não precisa sentir remorso, não deve tomar para si a responsabilidade do sofrimento que não causou, muito menos que tem que conter suas vontades e seus desejos. Mas a outra mensagem é tão forte e tão bem preparada, a que nega tudo que foi dito antes. Ela advoga pela vergonha", destaca um dos trechos.
Já na parte final do livro, as reviravoltas na trajetória de garota mostram um caminho além do determinismo, e sim de esperança, onde o amor vence o ódio e a liberdade conquista o espaço da opressão.
É possível que os leitores mais sensíveis terminem o livro querendo abraçar a menina e os mais afeitos às narrativas tradicionais se perguntem sobre o seu destino. Carregaria a culpa? Reproduziria a violência? Finalmente viveria o amor proibido?
Lendo, é impossível não pensar nas centenas de histórias que ouvimos - e por vezes vivenciamos, que vão de "tapinhas" às agressões mais graves. O que Jarid faz é mais do que escrever ficção, é encontrar nela uma forma de dissecar um Brasil real, que ultrapassa classes sociais e localizações geográficas.
De tão grande e grave os ataques às infâncias e adolescências, a dedicatória na primeira página do livro traz a frase "aos que foram desfeitos", como forma de acolher o leitor que vir a se identificar.
Sob o olhar da vítima, ela expõe este mesmo País, o nosso, onde ainda hoje se questiona a "Lei da Palmada" e pouco fala do aumento de 21% da violência contra crianças e adolescentes no ano passado, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Um país em que "proteger nossas crianças" se tornou slogan político, mas nunca prioridade na agenda pública.
Livro "Corpo desfeito", de Jarid Arraes
Quanto: R$ 49,90
Onde comprar: site da Companhia das Letras
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