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Gal Costa: o adeus da voz que cantou um Brasil político e tropical
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Gal Costa: o adeus da voz que cantou um Brasil político e tropical

Passeando por diferentes gêneros musicais, Gal Costa cantou arte e política ao longo de sua vida
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Gal Costa, cantora.  (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Gal Costa, cantora.

Uma voz potente que não traça apenas sua história pessoal, mas também a história do Brasil. Gal Costa é um dos principais ícones da Música Popular Brasileira ao representar movimentos, reinventar canções e inovar seu comportamento artístico ao longo das décadas. Aos 77 anos, a cantora morreu na manhã da última quarta-feira, 9 de novembro, mas deixa um legado que marca gerações.

Nascida Maria da Graça Costa Penna Burgo no dia 26 de setembro de 1945 em Salvador, a artista foi incentivada pela mãe a seguir carreira musical, enquanto o pai foi ausente em sua vida. Durante a adolescência cantava e tocava em festas e trabalhou em uma loja de discos, onde conheceu a bossa nova de João Gilberto.

Na década de 1960, teve início a amizade com Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gilberto Gil. Ao lado desses três ícones da música nacional, surgiram diversas parcerias musicais, incluindo o grupo "Doces Bárbaros", em 1976, que na época celebrava uma década de sucesso nas carreiras individuais de cada artista.

Vocação de ser revolucionária

"Em choque, triste demais, difícil demais. Nunca pensei um dia chegar a vocês para falar sobre a dor de perder Gal. O Brasil que ela sempre encantou com sua voz única, magistral hoje inteiro chora, como eu. Uma amiga que mesmo longe sempre lhe mantive admiração e respeito. Deus a receba na sua mais pura luz", declarou Maria Bethânia em vídeo publicado nas redes sociais.

Também ao lado de Caetano, Gilberto, Tom Zé e outros, Gal foi voz ativa no movimento Tropicália, estando presente no disco "Tropicalia ou Panis et Circencis" (1968). "Vai com ela a voz maviosa, o encanto do canto extraordinário que sempre foi a sua marca. Fica conosco a saudade, a tristeza, o pesar", comentou Gilberto sobre a morte da cantora. Além de arte, sua voz propagava política.

"Na ditadura militar, um pouco antes do AI-5, ela já tinha essa persona dentro do tropicalismo, que ela explodia o tropicalismo com uma roupagem mais explosiva mesmo. E quando Caetano e Gil foram exilados depois do AI-5, ela também reforçou esse discurso de resistência artística na ditadura militar com várias canções sobre o exílio dos amigos, sobre os crimes cometidos na ditadura militar, as violências de liberdade e foi a principal voz desse movimento. Ela registrou musicalmente uma parte muito importante e muito dolorosa da História brasileira que foi a ditadura militar. Ao longo da carreira, ela sempre apresentou isso no palco. Ela trazia o Brasil para o palco, ela nunca se omitiu em relação a isso. Inclusive, recentemente, com relação às movimentações pró-democracia", destaca o autor Renato Contente, autor do livro "Não se assuste, pessoa! As personas políticas de Gal Costa e Elis Regina na ditadura militar", ao Vida&Arte.

Em 1971, Gal realizou um dos shows mais importantes de sua carreira: "Fa-Tal", dirigido por Waly Salomão. A apresentação deu vida ao álbum ao vivo "Fa-Tal / Gal a Todo Vapor". “Quando voltei à vida, ela estava fazendo Fatal, tocando de pernas abertas, o vestido caído no meio. Havia gritos e aquela sutileza musical entremeada com os gritos. Era uma mulher em que a figura era libertadora para outras mulheres e para nós, homens. Para todo mundo”, disse Caetano ao homenagear a cantora após sua morte.

A cantora e compositora cearense Mona Gadelha também lamenta a partida de Gal. "Essa partida da Gal nos deixa, cantora e fãs, órfãs, especialmente por ter sido tão inusitado esse adeus. Inusitado porque a Gal vinha nos últimos anos lançando álbuns, realizando shows, encantando todos os lugares onde chegava sua voz", declara ao Vida&Arte. A artista ressalta a capacidade de Gal de reinventar canções. "Eu lembro quando a Gal em Fortaleza cantou uma música do Adoniran Barbosa, 'Trem das onze', de um jeito completamente diferente, uma interpretação, uma referência de João Gilberto da Bossa Nova, e aquilo foi muito polêmico, foi um escândalo. Então, a Gal, ela tem essa vocação de ser revolucionária, de ser a grande musa e voz da Tropicália. Atravessou as décadas sempre nos surpreendendo. Extraordinária cantando rock, magnífica cantando bossa nova, cantando Tom Jobim, fantástica cantando Música Popular. Foi e é uma cantora completa, uma referência. A cantora da canção brasileira", destaca.

"Gal Costa impactou profundamente a cultura brasileira e ouvir qualquer disco de Gal Costa é ouvir a História do Brasil, tanto artisticamente quanto politicamente como culturalmente. Ela participou do Bossa Nova, do Tropicalismo, do Desbunde, do Pop Nacional, movimentações musicais mais recentes também que tava antenada com novas gerações de músicos, de cantores e de compositores", ressalta o escritor Renato Contente.

O que faz dela a Gal Costa

Por Marcos Sampaio, crítico de música do O POVO

Pensar em um Brasil sem crise, um tempo de calmaria, onde tudo parece estar nos eixos é de uma utopia quase lisérgica. Intempéries, dificuldades, injustiças e lutas por tempos melhores é uma constância na história. Nesse front de batalhas diárias, muitos artistas deram a cara a tapa e enfrentaram um dragão por dia em nome de mostrar que podemos ter um País mais humano. Entre eles, Maria da Graça Costa Penna Burgos merece um destaque estrelado, um trono, um altar. Não é exagero, Gal Costa foi pioneira em tantas bandeiras, e sempre tão libertária, que chega a ser um erro dizer em que ano ela nasceu. Ela é de muitas épocas, e sempre olhando para a frente.

Fã de João Gilberto, ela ouviu do ídolo que seria a maior cantora do Brasil. O elogio serviu como incentivo para um primeiro disco pautado na bossa nova. Sem amarras, ela logo partiu pro tropicalismo e tornou-se porta-voz dos compositores exilados durante a ditadura militar. Na época, encrespou os cabelos, abraçou os berros de Janis Joplin, virou musa latina e não parou mais de trocar de pele. Nos anos de chumbo, Gal se armou de violão e flor no cabelo, subiu num banco e cantou com as pernas abertas. Contra a caretice e a ignorância, ela respondia com beleza e sensualidade.

Passada a ditadura, a forma mudou, mas não o conteúdo. Gal Costa fez a trilha sonora de muitos carnavais, deixando o público dançar livre numa das festas mais populares do País. Com o surgimento do rock nacional dos anos 1980, ela se aproximou dos novos compositores, cantou Frejat, Lulu Santos, Marina Lima e ainda fez uma versão explosiva de "Brasil" (Cazuza/ George Israel/ Nilo Romero), em ritmo de samba enredo. Nos anos 1990, essa mesma música gerou polêmica no show "O sorriso do gato de Alice", quando ela cantou com os seios de fora. Passados tantos anos, seu corpo ainda gerava debate.

Mas o Brasil de Gal Costa era imenso e não estava ligado em polêmicas fabricadas. Tanto que, nos anos 2000, num período de mudanças pessoais, ela se impôs um exílio artístico e decidiu por uma temporada de balanço. Fez uma série de discos cantando o interior, a modinha, o samba-canção, canções que fizeram história em vozes que a inspiraram, como Ângela Maria, Isaura Garcia e Linda Batista. Era também uma forma de homenagear a mãe, dona Mariah, que tanto a incentivou colocando os clássicos e populares perto da filha, quando esta ainda nem tinha largado a placenta.

Nos últimos anos, Gal voltou a se conectar com os novos. Puxada por Caetano Veloso, seu compositor mais frequente, a "musa de qualquer estação" flertou com o eletrônico, reverenciou Amy Winehouse e trouxe para seu seio nomes como Rubel, Tim Bernardes, Mallu Magalhães e Lirinha. Tantos nomes que cresceram ouvindo suas canções, agora eram eles que alimentavam Gal Costa de novidades. Por outro lado, no sentido inverso, ter uma canção interpretada por/com ela é também uma honraria, um selo de qualidade, uma certeza de estar no caminho certo. Isso porque todas as estradas musicais percorridas por Gal Costa levavam ao mesmo canto: o Brasil livre, democrático, carnavalesco e sorridente.

Leia também | Confira mais histórias e opiniões sobre música na coluna Discografia, com Marcos Sampaio

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