O cantor Erasmo Carlos (1941 - 2022) entoou alguns dos primeiros versos ainda em 1958, quando participou da banda The Snakes ao lado do amigo Tim Maia. Já durante o movimento da Jovem Guarda da década de 1960, ganhou o apelido de "Tremendão" ao cantar em conjunto com nomes como Roberto Carlos e Wanderléa. Após mais de meio século de carreira musical, o artista dialoga com os mais jovens ao firmar parcerias com Emicida e Marcelo Camelo. Até a sua morte nessa terça-feira, 22, após período de internação ocasionado por um edema pulmonar, Erasmo se manteve como elo entre distintas gerações e evidencia que, sem 'fama de mau', foi gigante, gentil e aberto.
Nascido na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, recebeu batismo como Erasmo Esteves. O sobrenome Carlos veio em homenagem ao seu primeiro agente e ao grande parceiro, o intérprete de "Como É Grande Meu Amor Por Você". O carioca foi criado pela mãe, Maria Diva, e enveredou pela música logo na juventude. Com cabelo penteado para trás e roupa engomada, tocou o "iê-iê-iê" nas guitarras da Jovem Guarda. Para o produtor e diretor musical Mimi Rocha, a entrada do gênero "transformou" a caretice. "Eles criaram a moda, a introdução da guitarra e de uma bateria mais pesada nas gravações. A sonoridade dos estúdios mudou", opina.
O grupo alcança amplitude durante o período da ditadura militar (1964 - 1985) e é alvo de críticas por artistas inseridos em movimentos como a Tropicália. Depois das fases marcadas pelos extremos dos vícios e pelas polêmicas, Erasmo se redescobre em carreira solo quando mergulha em questões existenciais, evidenciadas por meio das composições do álbum "Carlos, Erasmo", de 1971. É na composição de "Gente Aberta" que ele define uma filosofia a seguir: "Se o amor me chamar/ Eu vou". Com sucesso como grande ícone do rock nacional, conquistou a lealdade de inúmeros fãs e a admiração de companheiros de trabalho. O compositor também se multiplica a partir da delicadeza das letras românticas e da experiência com distintos ritmos, a exemplo do samba, visível em "Quem Foi Que Disse Que Eu Não Faço Samba" (2019). "Ele adquiriu uma linguagem própria, um modelo de balada brasileira que até então não existia. Compôs de tudo, até umas músicas de protesto, sempre sendo irreverente", pontua Mimi.
O DJ, cantor e compositor Alan Morais defende que o artista é a figura "mais unânime" do Brasil e destaca a grande perda para a cultura. "O diferencial dele é a simplicidade", reforça. O longo caminho de estrada na música logo desdobrou em participações no cinema, iniciadas pelo longa-metragem "Roberto Carlos e o Diamante Cor-de-Rosa" (1970) e "Roberto Carlos a 300 Quilômetros Por Hora" (1971). Em 2021, o artista assinou contrato com a Netflix e integrou o elenco do filme "Modo Avião", ao lado da atriz Larissa Manoela.
Após fase mais rebelde e imersão no estilo "hippie" - como ele mesmo denominava -, Erasmo celebrou os 81 anos com mais de 682 músicas, 643 gravações, 800 composições e 38 discos. Independente dos consideráveis títulos, o cantor é consagrado na riqueza de ser referência e inspiração para Maria Bethânia, Jorge Ben Jor, Chico Science, Marisa Monte, Caetano Veloso, Tim Bernardes e, entre tantos outros, o grande companheiro Roberto Carlos. "Para mim, Roberto está contido no Erasmo. Erasmo está completamente na moda, o pessoal faz questão de exaltar, gravar, fazer releituras. A nova geração se alimenta muito dele", complementa Alan. Em despedidas nas redes sociais, famosos lamentam a partida do compositor. "Naturalmente, algo de nós se vai junto à imprescindível obra, em seu doce balanço entre o ingênuo e o profundo", homenageou Lulu Santos.
Nos últimos trabalhos, pelos quais se manteve ativo, o "Tremendão" retornou à origem rockeira e ganhou mais um Grammy Latino na categoria "Melhor Álbum de Rock ou Música Alternativa em Língua Portuguesa" com o álbum "O futuro pertence à... Jovem Guarda". Em discurso, fez questão de agradecer a vitória com mais uma ode à arte e aos sentimentos: "É tão importante entender o conceito quanto ouvir a música... Existem várias formas de amor, e eu preciso de todas".
Durante muito tempo em nossas vidas
Marcos Sampaio, Jornalista e crítico de Música
Não queria escrever esse texto. Ele é inevitável, é necessário, mas dói em um canto muito especial. Tanto que ele terá dois começos. Se a notícia da morte de Erasmo Carlos veio duas vezes, o comentário também terá dois começos. Não há deboche ou pouco caso nessa proposta. Talvez algo de humor, mas o próprio Tremendão tratou com bom humor quando, há algumas semanas, circulou a notícia de sua morte e, coincidentemente, ele a desmentiu no Dia de Finados.
Para começar o primeiro começo, é muito sintomático que Erasmo parta tão pouco depois de Gal Costa. É uma geração que se despede. Em comum, ambos têm uma carreira marcada pelo ecletismo e um pé no rock. Para ser mais justo com o carioca da Tijuca, os dois pés. E só não eram três por uma limitação corporal. Tendo nascido Erasmo Esteves em 1941, ele viu o rock nascer, crescer e se expandir em infinitas possibilidades. Fã de Elvis Presley, Little Richard, Chuck Berry, Jerry Lee Lewis, Carl Perkins e outros pioneiros, não tardou para aquele rapaz grandão e desengonçado meter um casaco de couro, uma brilhantina e subir o topete.
Erasmo Carlos é um pioneiro e um dos grandes defensores do rock. Porém, num país de memória curta e amnésia farta, ele foi vaiado e expulso do palco do primeiro megafestival dedicado ao estilo. Na década em que o mercado colocou o rock nacional em evidência, ele foi tratado como piada no Rock in Rio de 1985. Naquele momento, a juventude não estava interessada em reconhecer quem havia aberto as portas para que, futuramente, surgissem paralamas, lulus e kid abelhas. A propósito, na primeira fita demo gravada pelo Barão Vermelho estava lá a voz de Cazuza berrando “Você me acende”, versão de Erasmo para o blues “You turn me on”.
Mas verdade seja dita, Erasmo Carlos foi muito além do rock. E aí, me desculpem, reside sua superioridade à obra do irmão camarada Roberto. Enquanto um se prendeu às próprias manias e foi se distanciando de tudo que pudesse renovar seu público, o outro se manteve em busca de novos sons, novos parceiros e novas ideias. Fez samba-rock com Jorge Benjor, rap com Emicida, soul music com Tim Maia, balada com Arnaldo Antunes e por aí vai. A essa lista, acrescente Marcelo Camelo, Caetano Veloso, Adriana Calcanhotto e Tim Bernardes, com quem compôs a vingativa “Praga”, gravada no mais recente disco de Alaíde Costa.
Além da obra volumosa, Erasmo compartilhou com Roberto uma espécie de onipresença. Com tantos discos gravados por eles e tantas composições nas vozes de tanta gente, é muito provável que você que diz que não gosta dos ídolos da Jovem Guarda, seja fã de uma música deles sem saber que é deles. E é aí que vem o segundo começo desse texto.
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Certa vez, estava a caminho da universidade onde comecei um curso que não me despertava interesse. Nada me despertava interesse naquele momento, para bem da verdade. Algum caminho precisava se abrir na minha frente, uma vez que os que eu estava tentando não estavam chegando a muito canto. Pelo rádio da topic, começou um som de violão que eu não reconheci de imediato, mas logo a primeira frase me pegou como um bofete impiedoso. Era Erasmo Carlos cantando “Filho único” e algo ficou ecoando na minha cabeça.
Desci do transporte atordoado e decidido a retomar o plano. Optei por um novo curso, descobri o Jornalismo e aqui estou homenageando um ídolo. Muito obrigado, Erasmo, por me trazer até aqui.
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